Maria Berenice Dias[1]
Falar sobre aborto e eutanásia é um verdadeiro paradoxo, pois é enfrentar o tema da vida e da morte. Quando há interesses contrapostos, a discussão é sempre polarizada e é difícil encontrar uma resposta que componha satisfatoriamente qualquer questão, principalmente quando se depara, de um lado, com fanatismo religioso que apregoa uma repressão rígida e, de outro, com o radicalismo de algumas feministas que acabam banalizando o aborto, o que pode levar ao risco, por todos indesejado, de que ele seja usado como mero método de controle da natalidade.
As polêmicas são invencíveis, ainda mais quando se trata de questões que têm ressonância na Medicina, na Psicologia, na Religião, no Direito, na Política, na Ética, na Bioética. Por todos esses desdobramentos, imperiosa uma visão multidisciplinar frente a determinadas situações que geram um verdadeiro entrelaçamento interdisciplinar.
Ainda que todos tenham como bem maior a vida, não se pode pensar em tal substantivo sem adjetivações, ou seja, o que se deseja é uma vida boa, saudável e feliz. Ao confrontar-se a ausência de tais predicados é que cabe questionar a quem pode ser dado o poder de decidir sobre a vida ou a morte, quer de um embrião, quer de um enfermo incurável.
Assim, mesmo que todos queiram ter o direito de viver – ou seja, nascer – e almejem uma morte boa – que é o significado da palavra eutanásia –, há realidades que merecem ser enfrentadas não exclusivamente sob aspectos pessoais decorrentes de convicções íntimas de origem ética, religiosa ou ideológica. Tal não passaria de mera consulta plebiscitária. Perquirir-se quem é contra ou quem é a favor com certeza também não leva a lugar nenhum.
O enfoque a ser dado tem um âmbito de abrangência muito maior, merecendo ser encarado de frente, principalmente face à chocante realidade que se tem presente.
O Estado elegeu como bem maior a vida, acabando por criminalizar qualquer ato, prática ou mecanismo que leve à exclusão até mesmo da sobrevida inviável.
Desde o momento da concepção até a ocorrência da morte mediante a cessação de todos os sinais vitais, é vedado qualquer ato, qualquer gesto, qualquer omissão que impeça a mantença da vida, postura que inclusive integra a esfera do Direito Penal, configurando crime.
Quanto ao aborto, são abertas duas exceções legais. Uma delas é estar a mãe sofrendo risco de vida, situação que praticamente configura legítima defesa ou até estado de necessidade. A outra autorização de abortamento é no caso de a gestação decorrer da prática do hediondo crime de estupro. Essa excludente de criminalidade admitida pelo legislador visa muito mais à preservação da família, a impedir o nascimento de um filho ilegítimo ou incestuoso, que não merecia, até o advento da atual Constituição Federal, o direito ao reconhecimento de sua paternidade. O bem juridicamente tutelado não era, e continua não sendo, garantir a liberdade de promover a interrupção do sofrimento da mulher de enfrentar uma gestação originada de um ato de violência. Cabe lembrar que o Código Penal data de 1940, quando rígidos eram os costumes e a mulher inclusive não dispunha da plena capacidade se casada fosse. Assim, não se pode deixar de reconhecer que o bem protegido é a unidade familiar, para livrá-la de um filho espúrio, sem se preocupar com o direito da vítima de repudiar o fruto de um ato de violência.
Mesmo que não admita a lei, a não ser nessas restritas hipóteses, não se pode deixar de arrostar uma realidade, ainda que triste: o aborto é praticado em larga escala. Como se trata de prática clandestina, difícil sua exata quantificação. Mas, segundo alguns estudos, no Brasil, são levados a efeito cerca de um milhão de abortos por ano, tendo quem fale em um milhão e meio, ou ainda que a cada nascimento corresponde um abortamento. Soma-se a esses assustadores números outro dado: 10.000 mulheres morrem em decorrência de procedimentos abortivos de má qualidade, sendo as complicações que ocorrem a maior causa de morte de mulheres em plena fase produtiva e com capacidade laboral. Por isso, justifica-se a insistência da Organização Mundial de Saúde em apontar o Brasil como recordista mundial em abortos provocados. Portanto, o aspecto mais saliente ao atentar-se neste fenômeno é que se trata de uma questão social. Dizer que um ato é pecado, é crime, não coíbe sua prática.
Ao optar o Estado pela preservação da vida de um embrião, deixou de garantir a vida das gestantes, limitando-se simplesmente a ignorar que a interrupção da gravidez indesejada continua a ser praticada, não podendo o Estado deixar de cumprir sua função de controlar a sociedade e assegurar a vida de todos. Portanto, o fato de ser criminalizada sua prática não basta para impedir que abortos continuem sendo levados a efeito, só que em condições adversas, face à falta de controle estatal. Assim, a mulher, além de ter que enfrentar uma gravidez não desejada, ainda precisa pôr em risco sua vida, face aos inadequados procedimentos a que tem de se submeter.
Atualmente, só a elite, que tem condições de atender aos exorbitantes valores cobrados por clínicas particulares, pode exercer o direito que a lei assegura. Aquela que não tem como pagar precisa submeter-se a procedimentos clandestinos, cujos riscos são por demais conhecidos, sujeitando-a a severas sequelas. É no mínimo cruel impedir que se exercite um direito assegurado por lei. Se a própria legislação faculta a possibilidade da interrupção da gestação nos casos em que especifica, nada justifica que não se assegure os meios para sua realização por intermédio do sistema público de saúde. Ou pior, até nas hipóteses em que há a possibilidade legal e até os meios econômicos para custear o ato, ainda assim há instituições que se negam à sua prática, o que impõe à titular que busque desnecessária autorização judicial, que, em inúmeras vezes, é negada.
O único meio para reverter esse preocupante quadro é não só descriminalizar o aborto, mas o desclandestinizar, o que, como já estatisticamente provado em todos os países que regulamentaram sua prática, além de diminuir vertiginosamente o número de mortes maternas, também diminui o próprio número de abortos realizados.
Mas não só quando se fala em vida os questionamentos existem.
Com referência à morte, ou ao direito à morte, que é chamado de eutanásia, mister lembrar o juramento de Hipócrates, consagrador do princípio da benemerência: Aplicarei os regimes para o bem dos doentes segundo o meu saber e a minha razão, nunca para prejudicar ou fazer mal a quem quer que seja.
A função do médico é de manutenção da vida, sem preocupar-se, no entanto, com sua qualidade. Face a todos os avanços da Medicina nos mais diversos campos, talvez o grande desafio cifre-se hoje no cotejo entre quantidade e qualidade de vida.
Agora já fazem parte dos meios considerados normais ventiladores de pulmão, acesso a exames com resultados rápidos, drogas novas, CTIs com monitorização plena, marca-passos de diversos tipos. Enfim, todo um aparato que possibilita manter e prolongar vidas inviáveis.
A necessidade de encontrar respostas a esses casos em que a vida é mantida por meios mecânicos é que levou ao surgimento dos chamados Comitês de Ética Institucionais, formados por médicos e representantes da sociedade, religiosos e até filósofos, a quem cabem as decisões de situações-tipo, que poderiam ser tituladas como “Casos Limítrofes da Vida” ou “A Discussão sobre os Limites da Vida”.
Cabe lembrar que a morte migrou do coração para o cérebro, pois passou a ser condicionada à cessação de funcionamento deste último. Essa mudança conceitual é que permite a retirada de órgãos para transplantes – que só têm utilidade se extraídos antes da parada do coração –, proceder legitimado pela Lei dos Transplantes.
Mas vida continua sendo vida. E as respostas devem ser buscadas na leitura e interpretação dos quatro princípios básicos da Bioética: o da não-maleficência, da beneficência, da autonomia e da justiça.
Não-maleficência significa não fazer o mal. Mas manter vidas inviáveis, com o sofrimento do paciente, será maleficência?
Beneficência é fazer o bem. O médico deve empregar os meios possíveis. Mas cabe indagar: é benemerente a atitude do médico de manter a vida pela vida, embora sabendo-a inviável, ainda que vendo a insuportabilidade da dor do paciente?
O princípio da autonomia compreende-se como o direito do paciente no uso pleno de sua razão – ou de seus responsáveis, quando faltar consciência – de estabelecer os limites em que gostaria de ver respeitada sua vontade em situações fronteiriças. Assim, cabe questionar, existe o direito do indivíduo de antecipadamente dizer: “não quero que tentem nada”?
Outra hipótese diz com a validade do documento público elaborado por alguém plenamente capaz solicitando que nada seja levado a efeito, em caso de doença incurável, em particular as que desconectam do mundo, ou quando o prolongar a vida seja às custas de intenso sofrimento.
O mais delicado dos princípios é o da justiça, em face do qual se questiona: até que ponto é legal, e não apenas legítimo, suspender os suportes de vida? Há uma faceta que sempre é mistificada e escondida e que se encontra subjacente em motivações de ordem econômica. A morte passou a ser asséptica dentro do silêncio barulhento das CTIs. A consciência de todos é aplacada. A consciência dos que lá trabalham, pois tudo fizeram; a consciência dos familiares, porque tudo proporcionaram. Esse fato, no entanto, leva a que os gastos se tornem cada vez mais assustadores. Na luta entre verbas restritas e gastos incompressíveis, um novo termo, um novo eufemismo foi criado: o não-investimento.
Indiscutível que a única conclusão a que se pode chegar é de que a vida, sendo um bem contido em si mesmo, certamente não pode nem deve ter rótulos de preço. A justiça não pode ser contabilista.
Pergunta-se: podem os médicos abreviar a vida? Ainda que a resposta seja “não”, permanece a pergunta sobre a necessidade de pensar sobre esses fatos. A resposta, nesse caso, talvez seja “sim”.
Não existem verdades absolutas, são necessárias relativizações. Do poder imperial dos médicos, juízes do destino de seus pacientes, imbuídos do princípio da benemerência, passou-se ao relacionamento horizontal, em que as pessoas podem decidir sobre seus destinos, na proposta do diálogo, da informação. A democracia do relacionamento consiste na assunção da cidadania plena, mesmo na hora da dor e da doença. Essa é a reflexão a que nos transporta a Bioética. Na consulta prévia – princípio da autonomia – é que reside a grande mudança conceitual. Ainda que a ética médica se torne mais permissiva, muitas vezes há a necessidade de se recorrer à Justiça na busca de respostas a indagações similares.
É bom sempre recordar o conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS): “Saúde é o completo estado de bem-estar físico, psíquico e social”. E esse bem-estar, se conseguido no coletivo, seria a volta do paraíso na terra, utopia desejada, mas raras vezes alcançada. Em nível individual, quando acontece, costuma levar o nome simples e globalizante de felicidade.
Publicado em 01/09/2010.
[1] Advogada
Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da OAB
Vice-Presidenta Nacional da IBDFAM