Maria Berenice Dias[1]
Se é medo ou insegurança, não se pode saber. Mas é difícil aceitar o diferente. Sobretudo quando o que foge do normal ou convencional é da ordem da sexualidade e diz com relações interpessoais, o índice de rejeição e repulsa se eleva de tal forma, e com força tão expressiva, que passa a ser um tabu, alvo de um profundo preconceito.
Evidencia esse fato, por exemplo, a identificação das pessoas pela circunstância de haverem sido concebidas dentro ou fora de uma relação de casamento. Sempre existiu uma verdadeira classificação dos filhos por meio de uma terminologia encharcada de discriminação. Daí filhos naturais, ilegítimos, adulterinos, incestuosos, bastardos, etc. Essa diferenciação, em boa hora, foi eliminada pela Constituição Federal de 1988.
Os próprios vínculos afetivos eram alvo de diferenciação preconceituosa, a depender da solenização do casamento. Com o nome de concubinato, a jurisprudência contemplava as uniões extramatrimoniais apenas no âmbito do Direito das Obrigações, identificando como sociedades de fato o que nada mais eram do que sociedades de afeto. Também foi a Carta Maior que as introduziu no Direito de Família, chamando-as de união estável.
A dificuldade do legislador de regulamentar situações que não gozam de plena aceitação social muitas vezes se prende ao receio de desagradar o eleitorado. Tal omissão acaba se transformando em cruel tentativa de eliminar situações que uma minoria, levada pela indiferença ou pelo fanatismo, não quer ver ou insiste em rejeitar. O resultado não pode ser mais nefasto. Essa postura configura verdadeiro abuso do poder de legislar. De outro lado, a inexistência de legislação desencoraja os julgadores a reconhecer conformações sociais que reclamam proteção jurídica. Desse modo, quer o silêncio da lei, quer o medo do Judiciário fazem uma legião de marginalizados, oprimidos e desvalidos. São excluídos do referendo legal e da proteção judicial pelo simples fato de viverem relações não aceitas por alguns como “certas” e “legítimas”.
Apesar de hoje serem conhecidas e reconhecidas como fato social pela maioria da sociedade, as relações que merecem ser chamadas de homoafetivas acabam sendo relegadas à invisibilidade pelo Direito brasileiro. Salvo raras decisões judiciais mais atentas à realidade dos fatos, a marginalidade a que são relegadas dá margem a insuportável enriquecimento injusto. A negativa de identificar esses relacionamentos como entidade familiar faz com que, no caso de morte de um dos parceiros, o patrimônio amealhado durante o período de convivência migre para as mãos de quem, muitas vezes, repudiou a orientação sexual de seu parente. Mas não é só. A mesma omissão não assegura, sequer, direito de moradia, pensão alimentícia ou benefício previdenciário, entre tantos outros.
Felizmente, o Projeto de Lei nº 6.960/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, ora encaminhado à Câmara dos Deputados para retocar o novo Código Civil possibilita que os relacionamentos de pessoas do mesmo sexo sejam reconhecidos como união estável. Sugere o Projeto que seja acrescentado ao Código Civil o art. 1.727-A, com a seguinte redação: As disposições contidas nos artigos anteriores (1.723 a 1.727 – que regulamentam a união estável) aplicam-se, no que couber, às uniões fáticas de pessoas capazes, que vivam em economia comum, de forma pública e notória, desde que não contrariem as normas de ordem pública e os bons costumes.
Nos dias de hoje, a não ser por puro preconceito, não pode haver quem tenha coragem de dizer que a união de duas pessoas, ainda que do mesmo sexo, que mantêm uma convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, contraria as normas de ordem pública e os bons costumes. A proposta, em boa hora, dá um grande passo: estende a proteção da cidadania e envolve com o manto da juridicidade quem só quer ter o direito de ser feliz.
E a ninguém, nem mesmo ao legislador ou ao juiz, é outorgado o direito de indicar um único caminho na busca da felicidade.
Publicado em 05/08/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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