Maria Berenice Dias[1]
Ivone M. C. Coelho de Souza[2]
As regras jurídicas, verdadeiras pautas de conduta, estabelecem direitos e obrigações a serem espontaneamente respeitadas por todos. Na ausência de adimplemento, cabe o uso da via judicial, para que o juiz diga o direito e faça justiça – juris-dictio, jurisdição – impondo ao obrigado coactamente o seu cumprimento.
Esse é o esquema da atividade jurisdicional em sua mais singela expressão. O partícipe de uma relação jurídica que se considere titular de um direito pede que o juiz reconheça seu direito e “aja” – daí o nome ação – contra o devedor, como forma de assegurar a realização de justiça.
Portanto, fazer justiça é operar o direito, ou seja, impor o cumprimento da norma legal, que ninguém pode eximir-se de conhecer e cumprir. O não-cumprimento das regras jurídicas faz surgir o conflito, cuja composição é buscada de forma coercitiva por meio de ações judiciais.
Ainda que tal seja a forma de compor as lides em geral, no âmbito do Direito de Família os conflitos se apresentam com uma feição completamente diferente, pois distinta a modalidade de adimplemento que é buscada. Basta tomar como exemplo a ação de separação litigiosa.
Normatiza a lei os direitos e deveres a serem observados pelos partícipes da sociedade conjugal – e agora da própria união estável – durante a constância da relação. Mas o cumprimento de tais deveres nunca é buscado na Justiça. Somente quando o vínculo afetivo se desfaz é que o cônjuge ou o parceiro bate às portas dos tribunais. A queixa, no entanto, não é pelo reconhecimento da existência de direitos, nem é buscado o adimplemento dos deveres descumpridos durante sua vigência.
O impacto pela sensação de fracasso é praticamente inevitável e, como tal, contribui para obstruir o processo de luto, quando sucede o fim das uniões. A dinâmica do grupo familiar, suas aquisições, suas adaptações, seus entraves e mesmo suas patologias instalam-se decisivamente nas contingências incertas dos litígios finais das uniões.
Toda separação enseja um sentimento de desamparo decorrente da perda do par. Uma pessoa não se relaciona com outra, mas com um objeto que corresponde ao seu desejo idealizado de completude. A pessoa amada tem sempre a estrutura de um objeto ideal, perfeito, e nela são depositados todos os sonhos e fantasias. Assim, a perda desse objeto, que ocorre com o fim do vínculo amoroso, vem encharcada de frustrações e decepções. As acusações mútuas que se geram pelo atrito final significam uma atualização de conflitos subentendidos desde muito antes de a união fenecer. O impulso dirigido à retaliação, também recíproco, prende-se às queixas atribuídas a um parceiro não-supridor, cuja capacidade amorosa mostrou-se insuficiente para as demandas de cada um. Esse contrato afetivo abala-se, então, por causas mais antigas que as agora alegadas. Sob as queixas objetivas, abrigam-se outras, mais profundas, atribuídas às lesões afetivas causadas por um ou por outro. A capacidade de considerar, de perceber o impasse como produzido por meio de um verdadeiro processo familiar age como elemento facilitador das decisões que se demandam para cada caso.
Os deveres negligenciados, os direitos não exercidos ao certo não mais têm qualquer relevo. Assim, deveria ser buscada a Justiça para solver tão-só as questões econômicas subjacentes ao fim da união, que se revestem de caráter patrimonial ou de conteúdo monetário, tais como partilha de bens e pensão alimentícia.
A própria disputa pela guarda dos filhos muitas vezes é usada como objeto de vingança, justamente no plano em que se expressam mais dramaticamente as repercussões do conflito. Como representantes de ambas as figuras parentais, os filhos – parte mais criativa dos dois e promessa de futuro – simbolizam um patrimônio disputado. Entretanto, quando, de forma não-consciente, é percebido serem os filhos uma parte predominante do outro, depreciado e temido, podem-se desencadear dolorosos sentimentos de abandono e negação de cuidados, a demandar valorização e escuta. São reconhecidas as especiais dificuldades dos julgadores, nos casos em que tanto as disputas pela guarda quanto as reivindicações de proteção e provimento relativas à prole centram as asperezas das contendas entre o antigo casal. As feridas que se produzem pela ruptura atuam como fatores de perturbação na necessária preservação dos filhos – certamente desejo de ambos -, não obstante o jogo contraditório que tem lugar na transformação da família. Se eventualmente se conseguir estabelecer um determinado cuidado e isenção quanto à figura do genitor mais ausente, já terão sido obtidas condições também mais brandas de negociações avançando um pouco mais, no trato do trauma da separação.
Outro lado peculiar a ser atentado é que as demandas que envolvem os vínculos afetivos acarretam o fim da privacidade. As pessoas desnudam-se, tornam-se públicas as experiências íntimas do casal, pois acabam sendo revelados todos os pactos conjugais que mantinham a estrutura do relacionamento. Por isso, cada parte procura provar a sua verdade, atribuindo ao outro a culpa pelo fim do sonho, pela perda do objeto amoroso. Busca cada um sua absolvição, desejando que o juiz proclame ser ele inocente. Quer o reconhecimento da responsabilidade do outro pelo fim da relação e que lhe seja imposta uma punição. Instala-se com freqüência certa dissociação entre a metade desejável do cônjuge, que nesse momento se distancia da outra metade, insuportável, com a qual não é mais possível conviver. A impossibilidade de agora perceber o antigo parceiro como integrado por essas duas vertentes de seu eu remete ao desgaste, que dificulta a separação. É como se, na crise atual, apenas as incompatibilidades afinal interagissem. A incomunicabilidade é previsível. Sob uma freqüente e sofrida vergonha, cambiam as figuras principescas das fantasias de outrora, que se revelam ante as expectativas dos companheiros, irremediavelmente sapos.
É de reconhecer que nessa seara não são trazidos aos operadores do direito fatos concretos, os quais chegam impregnados de subjetividade. Nem sempre a realidade transparece, pois vem plena de emotividade. As partes apresentam suas versões, que não guardam referencial na verdade, e os juízes acabam julgando não um real conflito de interesses – uma lide, no conceito de Carnelutti – correspondente ao direito de um e ao dever de outro.
Como a Psicanálise se propõe debruçar-se sobre a compreensão dos sentimentos e emoções humanos, desde suas manifestações claras às raízes mais profundas, quem trabalha com este ramo do Direito – seja como advogado, promotor ou magistrado – não pode deixar de analisar esses conflitos atento a um fato: são os restos do amor que são levados ao Judiciário.
As partes, no fundo, buscam que os lidadores do Direito de Família, mediante uma forma mágica, solvam os conflitos do relacionamento, remendem o casamento e refaçam o vínculo conjugal, segundo o modelo ideal construído na fantasia dos queixosos.
Os que participam do conflito não são só partes opostas, são sujeitos que pertencem a gêneros opostos, oposição essa que não decorre somente da diferença anatômica. Por mais que mudanças venham se processando, ainda persiste uma arraigada estrutura cultural e social que faz o homem e a mulher habitarem mundos diversos: um a esfera privada e o outro a pública, ele como sujeito ativo e ela como passivo, um dominador e uma dominada. Essas mesmas transformações tendem por vezes a ser estabelecidas mais intelectualmente do que estar, de fato, internalizadas. É assim quando a mulher “emancipada” se reduz à situação de dependência, em muito atribuível ao plano afetivo – pelo rompimento do vínculo matrimonial, ou o homem, “permissor e atualizado”, revela a face opressora, sentindo-se traído pelas reivindicações da ex-mulher. Os conflitos particulares de ambos, revividos pelo desmantelamento do contrato de casamento, transparecem pelas atitudes vitimadas de cada um.
Da mesma forma, a divisão rígida de papéis entre os gêneros – que ainda persiste nas relações de hoje com suas respectivas idealizações – se apresenta freqüentemente como responsável pelo rompimento do vínculo. São pertinentes àqueles casais que não se mostram preparados para arcar com as trocas, com as alternâncias, que dia a dia, mais e mais, se tornam atributos da família moderna e vêm se adequando justamente à nova dimensão dos papéis dos gêneros, em especial os assumidos pela mulher. Os antigos paradigmas referentes à feminilidade, oriundos inclusive de conceitos psicossociais, já não encontram o mesmo respaldo, graças às contribuições renovadas da Psicanálise e à atualizadíssima preocupação com as transformações da mulher no casamento e na família contemporâneos. O especial capítulo inerente à disputa arcaica entre os gêneros, objeto de acrescidos ônus na atualidade, sem dúvida responde pelas extraordinárias dificuldades que se associam à já difícil tarefa de contemplar essas vicissitudes do casamento, ou sua dissolução.
Ao desfazer-se a unidade, ninguém consegue deixar de reagir ao fim do afeto. Nesse momento em que acaba a família é que se evoca o Direito de Família. As questões dos sentimentos são as de mais difícil acesso e por si as definidoras dos tipos de sociedade conjugal. Considera-se que as histórias pré-nupciais dos antigos companheiros intervirão inevitavelmente na trajetória do grupo familiar constituído, de forma que essa relação de causa e conseqüência, quase previsível, venha a sobrecarregar o já difícil processo das disputas que encerram os casamentos.
Se a preservação do par como tal já não é viável, seja a sua dissolução o menos traumática possível, diz a Psicologia, para que se possa refazer com menos ressentimentos outras trajetórias. É, nesse sentido, sempre adequado considerar não apenas o formal, mas igualmente as diferenças, as especificidades, enfim, os sentimentos, para que se tente abrandar as inevitáveis dores que se produzirão pelo desmoronamento de um projeto de vida anteriormente partilhado.
Ante as peculiaridades que envolvem as questões de Direito de Família, necessária uma maior sensibilidade para lidar com as nevrálgicas questões que atingem a própria estrutura do ser humano, pois dizem diretamente com os seus sentimentos. Cabe a todos que se envolvem na solução de tais demandas buscar visualizar essa realidade que subjaz ao conflito trazido para acertamento. Por isso, indispensável que não se busquem somente as regras jurídicas a serem aplicadas, muito mais os regramentos comportamentais, para que se solvam não só as seqüelas econômicas, mas também suas conseqüências, muitas vezes mais significativas, que são as pertinentes ao psiquismo consciente ou inconsciente.
Quando ocorre a busca da Justiça, o Direito deve se apropriar dos conhecimentos da Psicanálise.
Publicado em 06/07/2016.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidenta do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam
www.mariaberenice.com.br
[2] Psicóloga, psicoterapeuta
Coordenadora da Assessoria Psicológica do JUSMulher
Presidente do Conselho da Sociedade de Psicologia do RS