Maria Berenice Dias[1]
A homossexualidade existe desde que o mundo é mundo. Incentivado na antiguidade, foi das religiões que recebeu a maior oposição. O cristianismo, ante o preceito “crescei e multiplicai-vos”, sacralizou o casamento unicamente com finalidade procriativa, considerando a sodomia como uma perversão.
Com a evolução dos costumes e a desvinculação do Estado da Igreja, houve a transformação da família, que passou a ser identificada pelo vínculo afetivo que une seus integrantes. De outro lado, o surgimento dos métodos contraceptivos e o atual estágio da engenharia genética permitiram a prática do sexo fora do casamento e sem o objetivo de constituição de prole. Passou a existir a possibilidade de sexo sem procriação e a ocorrência da concepção sem sexo. O casamento não é mais o único reduto em que é lícita a prática sexual e exclusivamente para fins conceptivos. Alterou-se o conceito de família, que deixou de ter na diferença de sexo sua tônica. Passou-se a admitir o livre exercício da sexualidade na busca do prazer.
O Estado Democrático de Direito, ao consagrar como norte o respeito à dignidade da pessoa humana, esteado nos princípios da igualdade e proibição da discriminação, não pode ignorar a existência de relacionamentos que não têm a diferença de sexo como elemento constitutivo, e deixar de atribuir-lhes efeitos jurídicos. Existindo vínculo amoroso, vida em comum e o estabelecimento de convivência em que está presente a mútua assistência e a conjunção de esforços para a sobrevivência do par, a lei necessita arrostar essa realidade. O legislador não pode se omitir e deve atribuir a tais relações conseqüências jurídicas, garantindo os direitos inerentes às relações familiares.
No entanto, ainda que ocorra a omissão legislativa, não deve o Judiciário negar seqüelas jurídico-econômicas quando tais relacionamentos lhe batem às portas.
A dificuldade de visualizar nesses vínculos a configuração de uma família e aplicar toda a legislação atinente à união estável e ao casamento revela postura preconceituosa, sendo fonte de enriquecimento sem causa. Repugna o ideal da justiça deferir o patrimônio de alguém a parentes que hostilizaram sua orientação sexual, em detrimento de quem dedicou amor e atenção e que restou sozinho e sem nada.
Enquanto silente o legislador, descabe a omissão do Judiciário. A ressalva do § 3º do art. 226 da Constituição Federal, por afrontar princípios constitucionais, não gera qualquer empecilho para ver nos vínculos homossexuais uma entidade familiar. Como merecem a proteção do Estado, deve-se aplicar por analogia o Direito de Família, pois se trata de uma sociedade de afeto, e não uma sociedade de fato. O reconhecimento da obrigação alimentar, a concessão do direito sucessório, a possibilidade de adoção precisam estender-se a tais vínculos, que têm o amor como tônica.
Publicado em 05/08/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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