Maria Berenice Dias

Advogada

Vice Presidente Nacional do IBDFAM

 

Há uma realidade que não há como desconhecer.

Somente após o advento da Lei Maria da Penha, a violência doméstica encontrou abrigo na lei civil e na lei processual.

O Código Civil passou a admitir a perda do poder familiar na hipótese de prática de violência contra a mulher (art. 1.638, § único, I, letra a) [1] ou contra os filhos (art. 1.638, § único, II, letra a).[2]

O Código de Processo Civil reconheceu a competência do domicílio da vítima de violência para as ações de divórcio, anulação do casamento ou dissolução da união estável (art. 53: I).[3]

A intervenção do Ministério Público tornou-se obrigatória nas ações em que for parte vítima de violência doméstica (art. 698, parágrafo único).[4]

Do mesmo modo foi assegurada prioridade na tramitação dos processos em que figure como parte vítima de violência doméstica (art. 1.048).[5]

Além da omissão legal, a violência doméstica sempre foi condenada à invisibilidade pela própria justiça.

Apesar de o Código Civil admitir a possibilidade de ser concedida a separação de corpos em caráter antecedente às ações de divórcio ou dissolução de união estável (1.562),[6] era difícil, ou quase impossível sua obtenção. Exclusivamente a sentença de separação judicial importava na separação de corpos (CC, art. 1.575).[7]

Isso que o Código de Processo Civil prevê a possibilidade de concessão de medida cautelar de urgência, diante da alegação de perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo (art. 303).[8] Inclusive via demanda cautelar em caráter antecedente (art. 305).[9]

E, sem a mínima atenção à causa do pedido da medida cautelar de separação de corpos, a definição sobre a guarda dos filhos depende da oitiva de ambas as partes perante o juiz (CC, art. 1.585).[10]

Os dispositivos incorporados pela Lei 14.713/2023 ao Código Civil (art. 1.584 – § 2º) e ao Código de Processo Civil (art. 699-A). fazem referência à violência doméstica. Mas dizem com a violência cometida contra os filhos, não contra a mulher, como muita gente acredita. Até porque os dispositivos não foram inseridos na Lei Maria da Penha, mas no capítulo do Código Civil que trata da proteção da pessoa dos filhos (arts. 1.583 a 1.590).

Deste modo, havendo probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar, o agressor não terá direito ao compartilhamento da guarda.[11] E, na audiência de mediação e conciliação, o juiz deve indagar às partes e ao Ministério Público sobre a existência de risco de violência doméstica ou familiar, concedendo prazo de cinco dias para a apresentação de provas.[12]

Claramente a referência é à violência doméstica e familiar contra a criança, regulamentada pela chamada lei Henry Borel (Lei 14.344/20220), que cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente. É autorizada a concessão de medidas protetivas de urgências, entre outras, o afastamento do lar do agressor, a vedação de contato e a restrição ou suspensão da convivência (art. 20).[13]

Além disso, a audiência de conciliação e mediação não é presidida pelo juiz, mas por conciliadores e mediadores (CPC, art. 334), a quem não cabe questionar as partes sobre os riscos de violência doméstica e, muito menos, conceder prazo para a apresentação de provas. Além disso, esta fase conciliatória não conta com a participação do Ministério Público.

De qualquer forma, a prática de violência contra a mulher não pode ensejar, por si só a impossibilidade da concessão da guarda compartilhada. Até porque alguém pode ser um mau marido ou companheiro, mas um bom pai.

De outro lado, para o reconhecimento da violência doméstica, é  indispensável que juízes e tribunais atentem à recente alteração da Lei Maria da Penha, que determina a concessão das medidas protetivas de urgência em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida ou apresentação de suas alegações escritas (art. 19, § 4º).[14]

Cabe lembrar que, em sede de violência doméstica e familiar contra a mulher, a comprovação de sua prática implica em dano moral in re ipsa, sendo desnecessária discussão para sua efetiva comprovação.[15]

A par destes avanços, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero,[16] de observância obrigatória, certamente irá propiciar uma maior visibilidade e um maior cuidado quando presente situações que configurem violência de gênero.

Afinal, está mais do que na hora de se dar um basta ao crime que mais se pratica no país: a violência doméstica contra mulheres e meninas.

 

[1] CC, art. 1.638, § único, I, letra a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; letra b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão;

[2] CC, art. 1.638, § único, II, letra a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; letra b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão.

[3] CPC, art. 53: I – para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável: d) de domicílio da vítima de violência doméstica e familiar,

[4] CPC, art. 698, parágrafo único. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas ações de família em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar,

[5] CPC, art. 1.048. Terão prioridade de tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, os procedimentos judiciais: III – em que figure como parte a vítima de violência doméstica e familiar,

[6] Art. 1.562. Antes de mover a ação de nulidade do casamento, a de anulação, a de separação judicial, a de divórcio direto ou a de dissolução de união estável, poderá requerer a parte, comprovando sua necessidade, a separação de corpos, que será concedida pelo juiz com a possível brevidade.

[7] CC, art. 1.575. A sentença de separação judicial importa a separação de corpos e a partilha de bens.

[8]  CPC, art. 303. Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo.

[9] CPC, art. 305. A petição inicial da ação que visa à prestação de tutela cautelar em caráter antecedente indicará a lide e seu fundamento, a exposição sumária do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

[10] CC, art. 1.585.  Em sede de medida cautelar de separação de corpos, em sede de medida cautelar de guarda ou em outra sede de fixação liminar de guarda, a decisão sobre guarda de filhos, mesmo que provisória, será proferida preferencialmente após a oitiva de ambas as partes perante o juiz, salvo se a proteção aos interesses dos filhos exigir a concessão de liminar sem a oitiva da outra parte, aplicando-se as disposições do art. 1.584.

[11] CC, art. 1.584 – § 2º. Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar.

[12] CPC, art. 699-A. Nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação de que trata o art. 695 deste Código, o juiz indagará às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de 5 (cinco) dias para a apresentação de prova ou de indícios pertinentes.

[13] Lei 14.344/20220, art. 20: II – o afastamento do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima; III – a proibição de aproximação da vítima, de seus familiares, das testemunhas e de noticiantes ou denunciantes, com a fixação do limite mínimo de distância entre estes e o agressor; VI – a restrição ou a suspensão de visitas à criança ou ao adolescente;

[14] LMP, art. 19, § 4º. As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.

[15] STJ – Tema 983: Nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória.

[16] CNJ – Recomendação 128/2022 e Resolução 492/2023.

 


data do artigo: 27/08/2024 e publicado em IBDFAM em mesma data.

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