Maria Berenice Dias

Advogada

                  Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

 

Já no caput do artigo que trata dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição da República proclama que todos são iguais perante a lei.[1] Logo em seguida repete: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.[2] Ao tratar da família, insiste em afirmar a igualdade de direitos e deveres referentes à sociedade conjugal.[3]

Sem contar as normatizações internacionais que o Brasil é signatário, os quais impõem respeito à igualdade, como garantia dos direitos humanos. Entre elas cabe citar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) da Organização das Nações Unidas (ONU)[4] e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará),[5] bem como a Agenda 2030 da ONU,[6] cujo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS-5 busca alcançar a igualdade de gênero e empoderar mulheres e menina.

Diante deste panorama tão protetivo, talvez se pudesse questionar a necessidade de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero[7] e impor a obrigatoriedade da adoção de suas diretrizes.[8]

A resposta é sim! Infelizmente, sim!

Até porque, como disse Lacan, a mulher não existe.

Nunca teve nem voz nem vez. Historicamente sempre foi relegada à absoluta invisibilidade. A começar pela assertiva bíblica de que nasceu de uma costela do homem, desqualificação que contrasta com a própria natureza, uma vez que é a mulher que dá vida ao homem.

Também durante muito tempo, a crença de que a mulher não tinha alma, a transformou em um mero objeto, alvo de apropriação que concedia a seu proprietário direito de vida ou morte sobre ela.

O poder do homem e a hipervalorização de sua virilidade fez a mulher acreditar que era um ser frágil, a precisar de proteção. Desde o nascimento a convenceram que o casamento e maternidade era o único destino que lhe permitiam sonhar. Tanto que seus brinquedos sempre foram verdadeiro adestramento para cuidar do seu lar doce lar. A naturalização dessas tarefas, tidas como dignificantes, nunca foram consideradas atividades dignas de reconhecimento, não dispondo de qualquer valor econômico.

A submissão lhe era imposta como uma virtude e a preservação da castidade o símbolo maior de sua pureza. No altar, ao ser entregue pelo pai ao noivo, o imaculado branco de seu vestido tinha este significado. Nada mais do que mecanismos para se mantivesse pura, recatada e do lar, de modo a dar ao varão a segurança de que os filhos dela seriam filhos seus, para quem o seu patrimônio seria legitimamente transferido. Basta atentar que até hoje a lei impõe o dever de fidelidade no casamento,[9] o que faz gerar a presunção legal da paternidade do marido,[10] ainda que a esposa confesse o adultério.[11]

Este sistema social e cultural fundado na hierarquia de gênero sempre imperou desde tempos imemoriais, e – desgraçadamente – persiste até os dias de hoje. É o chamado patriarcado, em que o homem detém o poder, é o titular de todos os bens, ocupa as posições de liderança e desfruta de toda sorte de privilégios. Em face da exacerbada sacralização da maternidade, a ponto de se afirmar que possui instinto materno, à mulher cabe a função reprodutiva. Confinada ao espaço doméstico, a ela são delegados todos os encargos de cuidado, atividade à qual não é reconhecido qualquer valor econômico. Alijada das esferas de poder, desempenha papéis subalternos, que não gozam de reconhecimento. De um modo geral, a ela são reservadas profissões identificadas no feminino que se situam no solo da pirâmide social.

Esta divisão desigual do trabalho acarreta desigualdade salarial e desagua na falta de representatividade feminina, o que fragiliza a mulher que, colocadas em situação de dependência e submissão, torna-se refém de toda sorte de violência e menosprezo. E a manutenção dos papéis de gênero impulsiona a desigualdade de gênero, constituindo o pano de fundo para a violência estrutural que vitimiza inúmeras mulheres, seja no âmbito privado, seja no público.[12]

O machismo estrutural, conservador e falocêntrico da sociedade acaba encontrando guarida na legislação.  Afinal, as casas legislativas são, na sua esmagadora maioria, formadas por homens, brancos e heterossexuais, realidade que se perpetua mesmo com todo avançar do movimento feminista, que sempre foi desqualificado e ridicularizado.

A outro giro, o Poder Judiciário ainda é, na sua significativa maioria integrada por homens brancos, heterossexuais e que não se despem de seus conceitos e preconceitos ao vestirem a toga.

O resultado acaba por ser dos mais perversos, pois forma-se um verdadeiro círculo vicioso. O legislador, por medo de desagradar seu eleitorado e comprometer sua reeleição, se abstém de editar leis inclusivas aos segmentos cuja vulnerabilidade merece especial proteção. Já juízes e juízas, por ausência de lei, olvidam a obrigação de decidir atentando à realidade da vida, mesmo de quem não dispõe de um dispositivo legal a ampará-los.

A resposta a esta ciranda encontra-se na máxima: a ausência de lei não significa ausência de direito! Aliás, é o que, desde o ano de 1942, determina a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,[13] indicando, inclusive, o caminho: analogia, princípios gerais do direito e costumes. Com esta ferramentas não há como buscar respostas exclusivamente na legislação infraconstitucional, na maioria das vezes de lenta tramitação e que, ao ser editada, já não mais reflete a situação presente.

Cabe à Constituição, prenhe de princípios e garantias, ser o leme a servir de norte para que a jurisprudência não reproduza os estereótipos de gênero que ainda se encontram na lei e subjazem na sociedade. Basta atentar aos absurdos números da violência contra a mulher e de feminicídios, que não param de crescer. E que somente serão estancados quando a sociedade encontrar no Poder Judiciário uma postura de absoluta intransigência frente a toda e qualquer situação que a mantenha na posição de menos valia que ainda lhe é imposta.

Christine Oliveira Peter da Silva chama de constitucionalismo feminista o método de intepretação do direito a partir das lentes de gênero, tendo como objetivo a contraposição da masculinidade hegemônica, fundada na noção do homem como sujeito universal dos direitos, para a afirmação do princípio da igualdade em sentido substancial. E propõe uma releitura do constitucionalismo contemporâneo, em diferentes aspectos, que incluem a interpretação das normas jurídicas, em especial pela construção da jurisprudência e pela produção literária.[14]

Alerta Ana Luisa Schmidt Ramos que é possível que as questões de gênero passem despercebidas pela Justiça. Como construtos culturais, os estereótipos de gênero tendem a ser neutralizados e assim, mesmo que gritantes e óbvios, passem sem ser notados. Não é improvável que juízes e juízas julguem os casos que lhes são submetidos a partir dos papéis determinados socialmente a homens e mulheres, desconsiderem provas que refutem ideias preconcebidas e hipóteses já levantadas e valorem somente as que as confirmem. Talvez nem queiram julgar diferentemente, para que se mantenha o status quo. Afinal, desconstruir estereótipos, reformular ideias, modos de pensar, de agir e de julgar lhes exigiria um maior esforço mental.[15]

Este é o desiderato do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, ao pontuar que: diariamente, nota-se que a sociedade impõe papéis diferentes a homens e mulheres. Mas o conceito de gênero permite ir além, expondo como essas diferenças são muitas vezes reprodutoras de hierarquias sociais. Isso porque, em muitos casos, aos homens são atribuídos características e papéis mais valorizados, enquanto às mulheres são atribuídos papéis e características menos valorizados, o que tem impactos importantes na forma como as relações sociais desiguais se estruturam.

Ao contrário do que uma ala conservadora e machista sustenta, o Protocolo não sugere que a Justiça favoreça as mulheres. Como afirma Eduardo Cambi, a exigência de sua aplicação concreta-se na necessidade de tratamentos jurídicos desiguais, na necessidade de políticas afirmativas, na desconstrução do caráter patriarcal ou sexista do direito, para combater condutas preconceituosas e buscar os limites e ambiguidades das leis antidiscriminatórias e protetivas.[16]

O constitucionalismo multinível feminista eficiente não se constrói sobre um sujeito feminino abstrato, porque depende da valorização das características específicas femininas, o que implica ressaltar suas diferenças e experiências próprias. O foco na diversidade é um dos aspectos mais notáveis de uma abordagem feminista do constitucionalismo. A diferença é reivindicada, aqui, em seu sentido plural: as desigualdades e a opressão vividas pelas mulheres não se limitam a um código binário homem/mulher, mas também abrangem outros marcadores sociais, como raça, cultura e categorias de classe social. É indispensável a construção de critérios hermenêuticos adequados, necessários, proporcionais e intersecionais que levem em consideração os seus interesses concretos, com a finalidade de promover o princípio da igualdade em sentido substancial.[17]

A naturalização dos deveres de cuidado não remunerado das mulheres no âmbito familiar, somada às expectativas geradas pelos papéis sociais dos corpos femininos, promove a rotulação, o empobrecimento, o individamento e o afastamento das mães do mercado de trabalho remunerado, deixando de se atentar que a estrutura social capitalista e neoliberal também se sustenta às expensas do capital invisível investido pelas mulheres no exercício do cuidado, para que os homens posam continuar mantendo-se inertes no âmbito da família.[18]

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero impõe também a capacitação dos magistrados e magistradas em temas relacionados a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em uma perspectiva interseccional. Sua estrutura absolutamente didática estabelece os conceitos básicos sobre sexo, gênero, identidade de gênero e sexualidade, com a apresentação de quadros comparativos. Ao tratar da desigualdade de gênero, chama a atenção das desigualdades estruturais nas relações de poder, a divisão sexual do trabalho e os estereótipos de gênero no direito e na atividade jurisdicional, apontando questões relevantes por meio de exemplos. Depois de apontar os diversos tipos de violência de gênero discorre sobre gênero e direito, neutralidade e imparcialidade, na interpretação e aplicação abstrata do direito sob a ótica do princípio da igualdade. Na parte seguinte é apresentado um guia com minucioso passo a passo. Fala primeiro sobre a aproximação com o processo, com os sujeitos processuais e as medidas especiais de proteção. Quanto à instrução processual, aborda a valorização das provas, a identificação dos fatos e do marco normativo, bem como dos precedentes aplicáveis. Ressalta a necessidade de interpretação não abstrata do direito e a análise tanto das normas impregnadas com estereótipos, bem como das indiretamente discriminatórias. Na parte final são trazidas questões de gênero específicas no âmbito da Justiça Federal, Justiça Estadual, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar, abordando transversalmente os mais diversos temas.

Para garantir acesso aos julgamentos que dão efetividade a estas diretrizes, o Conselho Nacional de Justiça criou o Banco de Sentenças e Decisão, que reúne julgados que atentam à perspectiva de gênero. Do mesmo modo o Superior Tribunal de Justiça dispõe de uma compilação de decisões no repertório Jurisprudência em Teses, de números 209, 2010, 211 e 231.

Merece especial destaque a decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu punições às autoridades que questionam a vida sexual pregressa ou tentam desqualificar as vítimas de violência sexual em investigações e ações que envolvem violência doméstica e violência política de gênero.[19]

Mas nem sempre a Justiça alcança os desdobramentos que as questões de gênero merecem. Diz a lei que, independente da situação conjugal, o poder familiar é exercido de forma igualitário por ambos os pais.[20] Apesar de preferencial a “guarda compartilhada”,[21] em que o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de maneira equilibrada entre a mãe e o pai,[22] é admitido que um deles – de um modo geral, o pai – de forma imotivada, abra mão de tais encargos, atribuindo-se a “guarda unilateral” à mãe.[23] Tal possibilidade é flagrantemente inconstitucional, além de configurar abandono afetivo, modalidade da dano moral que assegura direito indenizatório.[24] Ninguém pode abrir mão de um dever imposto a ambos os pais, em sede constitucional[25] e legal, tanto pelo Código Civil,[26] como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).[27]

O fato é que, historicamente, o cuidado para com os filhos é delegado à mãe e, quando da separação do casal eles permanecem sob sua responsabilidade, assumindo ela, sozinha, todos os encargos parentais Ao genitor é imposta, exclusivamente, a obrigação de pagar alimentos e “visitar” os filhos em finais de semanas alternados, para atividades meramente recreativas.

Esta realidade traz à tona a absoluta falta de atenção à situação das mulheres que sofrem enormes prejuízos de ordem pessoal, afetiva e profissional, não nem ao menos indenizadas por assumir tarefas que não são somente dela. Como alerta Silvia Marzagão, se está diante de grande discrepância na responsabilização dos genitores com relação aos cuidados da prole, situação que traz dificuldades inerentes à falta de tempo, de atualização profissional, de recolocação no mercado de trabalho, enfim, de retomada da vida de maneira plena.[28] É necessária a conscientização de que as responsabilidades para com a família não é uma tarefa exclusivamente a cargo das mulheres, e que os cuidados com a prole devem ser exercidos de forma igualitária por ambos os genitores. Afinal a mãe tem os mesmos direitos do pai de exercer suas atividades profissionais, em igualdade de condições e oportunidades, algo inatingível enquanto não for imposta a corresponsabilidade parental.

Principalmente no âmbito demandas que versam sobre a obrigação alimentar, alguns exemplos evidenciam a cegueira da lei e da justiça, que pouca ou nenhuma sensibilidade têm frente a esta assimetria.

As ações são propostas por quem se encontra em situação de vulnerabilidade patrimonial: crianças e adolescentes representados por suas mães ou mulheres que se dedicaram prioritariamente aos trabalhos domésticos, ficaram fora do mercado de trabalho, não dispondo de meios de prover a própria subsistência. São elas que batem às portas do Judiciário acionando quem, durante o período da vida em comum, se limitou a amealhar patrimônio e, depois da separação, deixou de cumprir com o dever de sustento da família. Ainda assim o Supremo Tribunal Federal, afirmando se tratar de procedimento de menor complexidade, dispensa a presença do advogado, na audiência inicial das ações de alimentos, sob a equivocada justificativa de não haver afronta aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.[29]

Três exemplos bastam para escancarar absoluta falta de atenção à perspectiva de gênero, evidenciando a necessidade de uma mudança de paradigmas para que seja atendido o princípio da igualdade.

Além da tendência de estabelecer como termo inicial dos alimentos provisórios a data da citação e não a data em que o encargo é deferido como diz a lei,[30] sistematicamente é determinado que o pagamento ocorra no mês seguinte ao vencido. Ou seja, é imposto ao credor de alimentos um período de jejum absoluto, pelo menos, de 30 dias. Apesar do silêncio no âmbito do Livro do Direito das Famílias, em nome da unicidade do arcabouço legal, indispensável invocar o dispositivo que trata do legado de alimentos, que determina o pagamento no começo de cada período.[31]

Apesar de o dever alimentar dos avós dispor de natureza subsidiária e complementar, insiste a jurisprudência, sem qualquer respaldo na lei, em reconhecer que a obrigação só surge quanto nenhum dos genitores tem condições de prover o sustento dos filhos.[32] Ora, quando a lei estabelece a reciprocidade da prestação de alimentos entre pais e filhos, não significa que a obrigação é de um deles na falta do outro. Não existe solidariedade entre cônjuges ou companheiros.

Continua a lei. Se o parente que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os parentes de grau imediato.[33] Os ascendentes.[34] Os graus de parentesco são os definidos na lei.[35] Cônjuges ou companheiros não são parentes entre si. Assim, absolutamente insustentável a orientação jurisprudencial consolidada. Ou seja, se o pai não paga, o encargo é transferido à mãe, ao invés de se admitir que seja acionado o avô paterno. Deste modo, a mãe que tem os filhos em sua companhia e precisa trabalhar para obter meios de assegurar que sobrevivam em face da omissão paterna, terá que assumir sozinha o encargo alimentar, sem poder convocar o ascendente do devedor, como autoriza a lei.

Outra distorção, agora no que diz com a obrigação alimentar entre cônjuges e companheiros. O dever de mútua assistência remanesce mesmo com fim da vida em comum, como obrigação alimentar, tendo por baliza o reconhecimento da necessidade de quem pede e a possibilidade de quem tem o dever de pagar.[36] No entanto, os tribunais passaram a reconhecer que os alimentos devidos à mulher têm caráter excepcional e transitório, sob a justificativa de ser descabido incentivar o ócio.[37] Assim, por meio de um exercício sobrenatural de futurologia, é fixado um prazo peremptório de vigência dos alimentos, que cessam automaticamente, sem qualquer espaço para verificar se quem ficou tanto tempo fora do competitivo e estreito mercado de trabalho conseguiu obter meios de sobreviver.

Há situações outras que existem. Sempre existiram. Mas, por serem alvo do rechaço social, acabavam condenadas à invisibilidade pela Justiça. Aliás, durante décadas, foi o que aconteceu com os chamados filhos “ilegítimos”, as uniões extramatrimoniais e os vínculos homoafetivos. Demorou até o Poder Judiciário se dar conta de que não tem o dom de fazer desaparecer situações alvo de preconceitos e discriminações.

No entanto, esta onipotência persiste. Negar a existência de multiconjugalidades: famílias simultâneas e poliafetivas é, no mínimo, uma hipocrisia. Ao não reconhecer vínculos familiares revestidos de publicidade, publicidade e continuidade, a Justiça é conivente com o homem que assim age, naturaliza, chancela e estimula tais comportamentos.[38] Apesar de ter sido ele quem descumpriu o dever de fidelidade, foi infiel e cometeu adultério, não lhe é imposta qualquer obrigação para com a família que ele constituiu. Em nome do princípio da monogamia – que nem princípio é – o homem é absolvido e acabam punidos a mulher e os filhos nascidos desta relação.

Exemplos outros não faltam. Mas sobra a esperança de que este panorama se modifique com a imposição de julgamento com perspectiva de gênero, norma cogente que não se destina somente aos julgadores e julgadoras, mas a todos os atores da área jurídica, em face da necessidade de utilização das lentes de gênero como forma de buscar a garantia de atuação da igualdade, pois é indispensável reconhecer as vulnerabilidades que atingem as mulheres ao longo de toda a história.[39]

Aliás, esta é a grande responsabilidade dos advogados, advogadas, membros do Ministério Público e da Defensoria. Destacar em todas as demandas a necessidade de um olhar sob a ótica de gênero. Recorrer quando o tema deixa de ser enfrentado pelo juízo singular, uma vez que a omissão compromete a validade da sentença. Somente uma atenta vigilância conseguirá emprestará efetividade ao Protocolo.

O Projeto de reforma do Código Civil, elaborado pela comissão de juristas nomeada pelo Congresso Nacional – da qual tive a honra de participar – foi extremamente econômico, quase omisso, no que diz com esta temática.

Ao disciplinar o regime da separação de bens, um dispositivo salutar:

Art. 1.688, § 2º: O trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver, darão direito a obter uma compensação que o juiz fixará, na falta de acordo, ao tempo da extinção da entidade familiar.

Na regulamentação sobre a obrigação alimentar, dois dispositivos abordam a violência doméstica:

Art. 1.694, § 5º: A violência doméstica impede o surgimento da obrigação de alimentos em favor de quem praticou a agressão.

Art. 1.708: O direito de receber alimentos poderá ser extinto ou reduzido, caso o credor tenha causado ou venha a causar ao devedor danos psíquicos ou grave constrangimento, incluindo as hipóteses de violência doméstica, perda da autoridade parental e abandono afetivo e material.

Parágrafo único. A extinção total ou parcial do direito aos alimentos dependerá da gravidade dos atos praticados.

E somente um artigo atenta à economia do cuidado, no âmbito do direito sucessório.

Art. 1.832. O herdeiro com quem comprovadamente o autor da herança conviveu, e que não mediu esforços para praticar atos de zelo e de cuidado em seu favor, durante os últimos tempos de sua vida, se concorrer à herança com outros herdeiros, com quem disputa o volume do acervo ou a forma de partilhá-lo:

I – terá direito de ter imediatamente, antes da partilha, destacado do montemor e disponibilizado para sua posse e uso imediato, o valor correspondente a 10% (dez por cento) de sua quota hereditária;

Ainda é pouco, muito pouco.

Não parece razoável – ao menos que se queira chancelar de maneira definitiva as desigualdades até então postas – que a igualdade jurídica constitucional possa, ainda que de maneira não intencional, ser usada contra aquela que dela mais deve ser beneficiária: a própria mulher.[40]

Mas há que e comungar da esperança de Alice Bianchini. A mudança interna de valores socioculturais, a ser estabelecida em todos os setores (privados e públicos) e por todas as instâncias (social, cultural, jurídica etc.) é a única chave capaz de levar à erradicação do sistema patriarcal, responsável direto pela opressão feminina/dominação masculina. O esforço de mudança que alcance cada um pode levar à alteração da forma de se viver em sociedade.[41]

Quem sabe o Protocolo consiga arrancar a venda dos olhos da Justiça. Aliás, representada por uma mulher!

 

 

 

Referências bibliográficas

BIANCHINI, Alice. O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero e o seu impacto em decisões judiciais. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025. p. 231-248.

CAMBI, Eduardo Augusto Salomão. Direito das Famílias com perspectiva de gênero: aplicação do protocolo de julgamento do Conselho Nacional de Justiça (Recomendação 128/2022 e Resolução 192/2023). Indaiatuba: Editora Foco, 2024.

CARVALHO, Hildemar Meneguzzi de. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero e a atuação dos tribunais de justiça: um recorte inicial. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025. p. 61-70.

MARGAZÃO, Silvia Felipe. A fixação dos alimentos, gênero e o protocolo para julgamento com essa perspectiva. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025. p.171-184.

PEREIRA, Gabriella Andréa. Invisibilidade do trabalho de cuidado e a possibilidade de responsabilização civil pela sobrecarga materna. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025. p. 185-198.

RAMOS, Ana Luisa Schmidt. Parcial é o juiz ou a juíza que não aplica o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025. p. 31-44.

SILVA, Christine Oliveira Peter da. Por uma dogmática constitucional feminista. Suprema. Revista de Estudos Constitucionais, v. 1, n. 2, 2021, p. 154-157.

[1]  CR, art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[2] CR, art. 5º, I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

[3] CR, art. 226, § 5º: Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

[4] Dec. 4.377/2002.

[5] Dec. 1.973/1996.

[6] Firmada pelo Brasil em 25/09/2015.

[7]  CNJ – Recomendação 128/2022.

[8]  CNJ – Resolução 492/2023.

[9] CC, art. 1.566:  São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca.

[10] CC, art. 1.597: Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento.

[11] CC, art. 1.600: Não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade.

[12] BIANCHINI, Alice, O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero e o seu impacto em decisões judiciais. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025, p. 246.

[13] Dec. Lei 4.657/1942, art. 4º: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

[14] SILVA, Christine Oliveira Peter da. Por uma dogmática constitucional feminista. Suprema. Revista de Estudos Constitucionais, v. 1, n. 2, 2021, p. 156.

[15] RAMOS, Ana Luisa Schmidt. Parcial é o juiz ou a juíza que não aplica o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025, p.  42.

[16] CAMBI, Eduardo Augusto Salomão. Direito das Famílias com perspectiva de gênero: aplicação do protocolo de julgamento do Conselho Nacional de Justiça (Recomendação 128/2022 e Resolução 192/2023). Indaiatuba: Editora Foco, 2024, 25.

[17] CAMBI, Eduardo Augusto Salomão. Direito das Famílias com perspectiva de gênero: aplicação do protocolo de julgamento do Conselho Nacional de Justiça (Recomendação 128/2022 e Resolução 192/2023). Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 92.

[18] PEREIRA, Gabriella Andréa. Invisibilidade do trabalho de cuidado e a possibilidade de responsabilização civil pela sobrecarga materna. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025, p. 193.

[19] STF – ADPF 1.107, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 23/05/2024.

[20] CC, art. 1.634:  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação.

[21] Os destaques às expressões “guarda compartilhada”, “guarda unilateral” e direito “de visitas” servem para evidenciar a impropriedade de tais termos para identificar vínculos de parentalidade. Filhos não são objetos que possam ser guardados. Custódia diz com cuidado. Pais não visitam os filhos, mas tem o dever de com eles conviver. Deste modo, preferível falar em convivência conjunta, custódia unilateral e em período de convívio.

[22] CC, art. 1.583, § 2º: Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.

[23]  CC, art. 1.584:  A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar.

[24] (…) A possibilidade de os pais serem condenados a reparar os danos morais causados pelo abandono afetivo do filho, ainda que em caráter excepcional, decorre do fato de essa espécie de condenação não ser afastada pela obrigação de prestar alimentos e nem tampouco pela perda do poder familiar, na medida em que essa reparação possui fundamento jurídico próprio, bem como causa específica e autônoma, que é o descumprimento, pelos pais, do dever jurídico de exercer a parentalidade de maneira responsável. O dever jurídico de exercer a parentalidade de modo responsável compreende a obrigação de conferir ao filho uma firme referência parental, de modo a propiciar o seu adequado desenvolvimento mental, psíquico e de personalidade, sempre com vistas a não apenas observar, mas efetivamente concretizar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana, de modo que, se de sua inobservância, resultarem traumas, lesões ou prejuízos perceptíveis na criança ou adolescente, não haverá óbice para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelo filho. (…) (STJ – REsp 1887697 RJ 2019/0290679-8, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 21/09/2021).

[25] CR, art. 226, § 5º: Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

[26] CC, art. 1.632: A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.

[27] ECA, art. 22: Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

Parágrafo único.  A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei.

[28] MARZAGÃO, Silvia Felipe. A fixação dos alimentos, gênero e o protocolo para julgamento com essa perspectiva. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, p. 180.

[29] STF – ADPF 591, T. Pleno,  Rel. Cristiano Zanin,  21/08/2024.

[30]   LA, art. 4º: As despachar o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não necessita.

[31] CC, art. 1.928: Parágrafo único. Se as prestações forem deixadas a título de alimentos, pagar-se-ão no começo de cada período, sempre que outra coisa não tenha disposto o testador.

[32] (…) A jurisprudência desta Corte manifesta-se no sentido de que a responsabilidade dos avós de prestar alimentos é subsidiária e complementar à responsabilidade dos pais, sendo exigível, tão somente, em caso de impossibilidade de cumprimento da prestação, ou de cumprimento insuficiente, pelos genitores. (…) (STJ – AgInt no AREsp 2047200 AL 2021/0407758-0, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, j. 13/02/2023).

[33] CC, art. 1.698: Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.

[34] CC, art. 1.696: O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.

[35] CC, art. 1.591: São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes.

CC, art. 1.592: São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra.

[36] CC, art. 1.694: Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

Art. 1.695: São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento.

[37] (…) Os chamados alimentos transitórios, conquanto não possuam previsão legal específica, repousam no artigo 1.694 do Código Civil, por também prestigiar o dever de mútua assistência e solidariedade, embora caracterizados pela fixação de alimentos a prazo certo com termo final, a fim de propiciar a subsistência do cônjuge menos favorecido financeiramente até sua reintegração no mercado de trabalho.  O casamento não confere necessariamente o direito aos alimentos ao ex-cônjuge. A (in) capacidade potencial de trabalho é fator primordial para a concessão dos alimentos. Não bastam, portanto, a possibilidade do alimentante e a necessidade do alimentado. (…) (STJ – AREsp 2284105 DF 2023/0019281-6, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, p. DJ 13/03/2023).

[38] STF – Tema 526: É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável.

STF – Tema 529: A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. (RE 1.045.273)

[39] CARVALHO Hildemar Menegazzi de. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero e a atuação dos tribunais de justiça: um recorte inicial. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, p. 61.

[40] MARZAGÃO, Silvia Felipe. A fixação dos alimentos, gênero e o protocolo para julgamento com essa perspectiva. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, p. 183.

[41] BIANCHINI, Alice, O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero e o seu impacto em decisões judiciais. Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – Reflexões, implementações e desafios. Coleção Jurisfeministas – Volume II. Florianópolis: Habitus Editora, 2025, p. 246.

 

Data do artigo: 24/12/2024.

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