Maria Berenice Dias[1]
O advento da nova ordem constitucional veio a excluir do sistema jurídico toda a legislação infraconstitucional que não se coadunava com o novo perfil do Estado. A não-recepção de um imenso número de normas existentes fez surgir vácuos na estrutura legal. Como a plenitude do sistema estatal não convive com vazios, a colmatação das lacunas é atribuída ao Poder Judiciário, por determinação do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Identificada a omissão da lei, mesmo assim não pode o juiz eximir-se do dever de julgar. A falta de lei não quer dizer inexistência do direito. Não cabe se escudar o julgador na ausência ou na não-vigência de norma legal como justificativa para afirmar a inexistência do direito à tutela e negar-se a dizer o direito, negar a jurisdição.
Ante determinada situação submetida a julgamento, o magistrado, ao esbarrar com dispositivos legais sem vigência, por afrontarem princípios constitucionais, há de reconhecer estar frente a um vazio legal. Como a ausência de lei não pode servir de justificativa para eximir-se de julgar, o jeito é manejar os instrumentos alcançados pela própria lei para colmatar as lacunas. A analogia, os princípios gerais do direito e os costumes são as ferramentas a serem usadas na busca da solução que mais se amolda à justiça.
Fazer analogia é buscar uma situação que tenha semelhança a outra, mas este confronto não admite visões preconceituosas e discriminadoras. Os princípios norteadores do direito positivo estão na Constituição Federal, que prioriza a liberdade, a igualdade e o respeito à dignidade da pessoa humana. Os costumes a serem invocados são os vigentes na sociedade atual e não os que vigoravam antigamente.
Revelar o direito para solucionar o caso concreto é, com certeza, a função mais significativa do Judiciário. No entanto, para a concreção do direito o juiz precisa ter os olhos voltados à realidade social. Mister deixe de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados, e não punidos.
Publicado em 12/01/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família
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