Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Violência doméstica

Por que a mulher é vítima?

Maria Berenice Dias[1]

 

Não bastou a revolução feminista, o significativo avanço das mulheres em várias áreas e setores do mundo público. Nada disso coibiu a mais cruel sequela da discriminação de que as mulheres ainda são vítimas: a violência doméstica.

A ideologia patriarcal ainda subsiste. Venderam à mulher a ideia de que é frágil e necessita de proteção. Precisa ser bela e recatada. Foi delegado ao homem o papel de protetor, de provedor. Daí à dominação, da superioridade à agressão, é um passo. O homem se tem como proprietário do corpo e da vontade da mulher. Essa errônea consciência de uma posição de poder é que assegura o suposto direito de o macho fazer uso de sua força física sobre a fêmea.

A necessidade de corresponder à expectativa social de que precisa ter um par e um lar, sempre impôs à mulher a lei do silêncio.

Mantem-se inerte frente a reclamações, reprimendas e reprovações. Aceita calada castigos e punições. É assim que começa a violência psicológica, que não demora a se transformar em violência física. Aos gritos seguem-se empurrões, tapas, socos, pontapés, num crescer sem fim. As agressões não se cingem à pessoa da vítima. O homem a humilha diante dos filhos e ameaça maltratá-los.

Em um primeiro momento, a mulher encontra explicações e justificativas para o comportamento do parceiro. Acredita que é uma fase que vai passar, que ele anda estressado, trabalhando muito ou com pouco dinheiro. Procura agradá-lo, ser mais compreensiva, boa parceira. Para evitar problemas, submete-se à vontade dele. Vive constantemente assustada, pois não sabe quando será a próxima explosão. Torna-se insegura e começa a perguntar a ele o quê e como fazer, acabando sua dependente. Anula a si própria, seus desejos, seus sonhos de realização pessoal e seus objetivos de vida.

O homem não odeia a mulher, odeia a si mesmo. Quer submetê-la à sua vontade. Assim, busca destruir sua autoestima. Críticas constantes levam-na a acreditar que tudo o que faz é errado, nada entende, não sabe se vestir nem se comportar socialmente. É induzida a acreditar que não tem capacidade para administrar a casa e nem cuidar dos filhos. A alegação de que ela não tem bom desempenho sexual resulta no afastamento da intimidade, surgindo a ameaça de abandono.

Para dominar a vítima, o varão procura isolá-la do mundo exterior.  Afasta-a da família. Proíbe amizades, a ridiculariza perante os amigos. Com isso, a mulher se distancia das pessoas junto às quais teria como buscar apoio. Perde a possibilidade de contato com quem poderia incentivá-la a romper a escalada da violência.

Nesse momento, ela vira um alvo fácil. A angústia passa a ser seu cotidiano. Questiona o que fez de errado, sem se dar conta de que para o agressor não existe nada certo. Não há como satisfazer o que nada mais é do que desejo de dominação, de mando, fruto de um comportamento controlador.

Ele sempre atribui a ela a culpa. Tenta justificar seu descontrole na conduta dela. Alega que foi a vítima quem começou, não faz nada correto, não o obedece. A mulher acaba reconhecendo que, em parte, a culpa é sua. Assim o perdoa. Para evitar nova agressão, recua, deixando mais espaço para a violência. O medo da solidão a faz dependente, sua segurança resta abalada. Não resiste à manipulação e se torna prisioneira da vontade do homem.

Depois de um episódio de violência, vem o arrependimento, pedidos de perdão, choro, flores, promessas etc. Cenas de ciúmes são justificadas como prova de amor, o que deixa a vítima lisonjeada. O clima familiar melhora e o casal vive uma nova lua de mel. Ela sente-se protegida, amada e acredita que ele vai mudar.

Tudo fica bem até a próxima cobrança, ameaça, grito, tapa…

A ferida sara, os ossos quebrados se recuperam, o sangue seca, mas a perda da autoestima, o sentimento de menos valia, a depressão, essas são feridas que jamais cicatrizam.

Com o advento da Lei Maria da Penha, ficou escancarado que a violência contra mulheres é o crime mais recorrente que existe. E os números só crescem, o que não quer dizer que a violência tem aumentado. Não. Significa que as mulheres estão sentindo-se mais encorajadas a denunciar seus agressores.

Em face da sempre alegada falta de recursos– que mais evidencia desinteresse – a solução, mais uma vez, é chamar a sociedade para suprir as falhas do Estado. Assim, universidades, organizações não governamentais, serviços voluntários precisam ser convocados a cooperar, para coibir a violência contra a mulher.

Indispensável é gerar no homem a consciência de que ele não é proprietário da mulher, não pode dispor de seu corpo, comprometer sua integridade física, higidez psicológica ou sua liberdade sexual.

Ninguém mais pode ser cúmplice da impunidade!

 

 

Publicado em 23/07/2016.

[1] Advogada

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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