Maria Berenice Dias[1]
A sexualidade sempre esteve envolta em mitos e tabus. A sociedade buscou confiná-la na conjugalidade, única sede em que a prática sexual, mais do que permitida, era até obrigatória. Daí a expressão débito conjugal. Pelo mesmo motivo, a lei reconhecia como família exclusivamente as uniões sacralizadas pelo casamento.
O grande preconceito contra a liberdade sexual provém das religiões. Na busca de preservação do grupo étnico, o exercício da sexualidade deveria se limitar à procriação. A homossexualidade, com a pecha de “sodomia”, era vista como uma aberração da natureza, uma transgressão à ordem natural, uma verdadeira perversão.
A sociedade tem o costume de gerar sistemas de exclusões muitas vezes baseados em preconceitos estigmatizantes. Tudo que se situa fora dos estereótipos acaba por ser rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade, algo que não se encaixa nos moldes. Por isso, ainda há uma verdadeira aversão aos vínculos homossexuais, sendo renegados à marginalidade aqueles que não têm preferências sexuais dentro de determinados padrões de estrita moralidade.
Mas houve uma profunda transformação dos paradigmas da família. A aceitação do sexo fora do casamento, a queda do tabu da virgindade, o surgimento dos métodos contraceptivos, a evolução da engenharia genética tornaram possíveis sexo sem casamento e procriação sem sexo. A essa mudança foi sensível a Constituição Federal, que enlaçou no âmbito da juridicidade as relações extramatrimoniais. Nesse momento, ingressou no sistema jurídico um sentimento: o afeto.
Assim, não é o exercício da sexualidade ou a capacidade procriativa que distinguem os vínculos afetivos. A identidade ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamento, e melhor é falar em relações homoafetivas ou heteroafetivas. Mister emprestar visibilidade a toda e qualquer convivência marcada pelo comprometimento mútuo. Desimporta a identificação do sexo do par, se igual ou diferente, pois não se pode falar em homossexualidade sem pensar em afeto.
Não é ignorando a existência da homoafetividade, deixando-a à margem da sociedade e fora do Direito, que ela irá desaparecer. Necessário respeitar a liberdade sexual, as opções de vida dentro da diversidade, obedecendo ao cânone constitucional de respeito à dignidade do ser humano.
É chegada a hora de mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos. A omissão leva à opressão, que é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação, fazendo com que deixe o Estado de cumprir sua obrigação de conduzir o cidadão, todos os cidadãos, à felicidade.
Publicado em 05/08/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice Presidente Nacional do IBDFAM
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