Maria Berenice Dias[1]
Normalmente, quando se junta a um substantivo algum adjetivo, surge um termo de significado único. Qualifica-se da mesma forma tanto um substantivo masculino, quanto feminino. Só que tal sentido unívoco não existe quando adjetivos qualificam os substantivos “homem” e “mulher”.
“Homem bom” é o cidadão dotado de atributos ligados à generosidade e à solidariedade. “Homem honesto” é o que cumpre suas obrigações. “Homem público” é o que adquire projeção social, ou na política, ou nos meios de comunicação.
Anexados, porém, esses mesmos adjetivos, ao substantivo “mulher”, daí resultam as expressões “mulher boa”, “mulher honesta”, “mulher pública”, locuções que dizem exclusivamente com atributos ligados à sexualidade, ao exercício da liberdade sexual, e adquirem conotação pejorativa.
Essa divergência conceitual revela ainda o conservadorismo de uma sociedade patriarcal e preconceituosa, que enfoca a mulher como objeto de apropriação. Para ser desejada seu corpo deve atender aos padrões físicos ideais de beleza. Para ser respeitada deve abster-se do livre exercício de sua sexualidade. Os predicados femininos de decência, pureza, castidade e recato servem para escamotear, por efeito da ideologia machista, a condição da mulher como pessoa humana. Seus direitos são mais facilmente violentados na medida em que sua dignidade é rebaixada ou, no mínimo, ocultada no que diz com suas atividades pessoais ou sociais, a começar por sua participação no mercado de trabalho e no exercício da sexualidade.
Em contrapartida, a virilidade é a grande qualidade do homem, prestigiada e incentivada desde cedo pela própria família. A prática sexual é cultivada como prova da masculinidade e divulgada com muito orgulho. Os homens podem buscar o prazer. Já as mulheres têm de se limitar a ter filhos e a serem filhas, além de boas esposas e mães. Mas devem ser recatadas e honestas, para serem exibidas como troféus pelos maridos, como prova de sua capacidade de ter uma dama por esposa. Mas, além disso, de preferência, as mulheres devem ser “magras, bonitas, boas, e gostosas”, para seus proprietários deixarem os outros com água na boca, nada além disso, pois esses atributos servem apenas para consumo interno, entre quatro paredes.
Assim, veio em boa hora a alteração do Código Penal, que deixa de condicionar o reconhecimento da prática dos delitos de posse sexual e atentado ao pudor à postura da vítima. Descabido que a eventual desonestidade da mulher assegure o direito à prática desses atos.
Condicionar a tipificação de crimes sexuais – injustificavelmente chamados de crimes contra os costumes – à honestidade da vítima é admitir a existência do direito de praticar conjunção carnal ou atentado ao pudor mediante fraude.
Todos, homens e mulheres, devem ser honestos, mas honestos consigo mesmos. Tal atributo não pode ter significado diferenciado em função do sexo ou dispor de conotação de ordem sexual. Honestidade é dever de cidadania. Todos precisam agir de conformidade com os princípios éticos estruturantes da sociedade, para assegurar a convivência harmônica, de forma a preservar o respeito à dignidade da pessoa humana, indiscriminadamente, cânone maior do Estado Democrático de Direito.
Publicado em 16/04/2006.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
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