Maria Berenice Dias[1]
Todos os seres só têm uma razão de viver, que é o encontro da felicidade, como já decantava o próprio Aristóteles.
Ao Estado, a quem foi delegada essa tarefa, cabe organizar de tal forma a sociedade, que, além de regular as relações das pessoas, precisa respeitar sua dignidade, para garantir o direito à vida, não só a vida como mero substantivo, mas vida de forma adjetivada, vida com dignidade, vida feliz.
Para isso, é necessário o estabelecimento de regras de comportamento, que, para ser respeitadas, devem ser dotadas de sanções: nascem assim as normas jurídicas. Cabe ao legislador “carimbar” – para usar a expressão de Pontes de Miranda – os fatos da vida, outorgando a obrigação de fazê-las cumprir ao Executivo e a vigilância para seu cumprimento ao Judiciário.
A sociedade evolui, transforma-se, reforma-se por fenômenos múltiplos, o que implica a necessidade constante de atualização das normas jurídicas. O influxo da chamada globalização rompeu com as tradições, vinculações e amarras, e mudar as regras que dizem com a própria vida da pessoa é uma tarefa para gigantes – como já tive oportunidade de referir quando tive o privilégio de participar de uma reunião da Comissão Especial de elaboração do Código Civil da Câmara Federal.
Principalmente quando se trata das relações afetivas, matéria que diz com a própria vida das pessoas, pois se refere a seus sentimentos, à sua alma – afinal é disso que trata o Direito de Família -, a questão é mais árdua.
Mas preferir que as coisas fiquem como estão – postura tipicamente humana, pelo medo de mudanças – ou tecer críticas é a postura mais fácil, mas que em nada contribui para que algo seja mudado.
A limitação de tempo impõe que me restrinja a fazer algumas considerações sobre pontos que entendo merecem ainda ser repensados.
Por isso, por favor, não tenham minhas observações como uma postura detratora ou escatológica, até porque, quem sabe, ainda haja tempo para se fazerem algumas modificações.
De primeiro, é necessário chamar a atenção a um fato: que o Projeto original do Código Civil data de 1972, ou seja, é anterior, inclusive, à Lei do Divórcio, que é de 1977.
Tramitou pelo Congresso Nacional antes da promulgação da Constituição Federal, que adotou uma nova ordem de valores, dando outro enfoque ao próprio sistema jurídico, privilegiando a dignidade da pessoa humana.
Assim, o sem-número de emendas com que foi bombardeado o pré-código decorre dessa circunstância. Mas obrigatório reconhecer que arrojada foi a verdadeira luta empreendida pelo relator desse Projeto, Deputado desta terra, Ricardo Fiúza, que deve ser motivo de orgulho a todos. Preocupado com a constitucionalidade do Projeto, conseguiu alterar o próprio Regimento do Congresso Nacional, procurando um meio de afeiçoar a lei para regulamentar o conteúdo dos direitos já consagrados na Lei Maior.
Louvável o trabalho do Des. Jones Figueiredo e dos Drs. Alexandre Assunção e Mário Delgado, que em muito aperfeiçoaram o texto legal. Mas, apesar de todo esse esforço, imperioso questionar inúmeros pontos, pois é mister reconhecer que chega uma lei velha. As plásticas a que foi submetida não lhe deram o viço que todos queríamos que ela, e até mesmo nós, tivéssemos.
A legislação que ainda se encontra em vigor regula a família do início do século passado, com nítida influência da Igreja. A família era só o vínculo decorrente dos sagrados laços do matrimônio, assim, verdadeira instituição, matrimonializada, patrimonializada, patriarcal, hierarquizada e heterossexual. Tanto que era indissolúvel, o regime legal era o da comunhão universal, com obrigatória identificação pelo nome do marido, com a relativização da capacidade da mulher.
O surgimento dos novos paradigmas da família, quer pela emancipação da mulher, quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos, levou à dissolubilidade do vínculo do casamento. A evolução da engenharia genética dissociou casamento, sexo e reprodução, que não mais são conceitos atrelados.
O moderno enfoque dado à família pelo Direito deixou de priorizar suas características exclusivamente patrimoniais, voltando-se muito mais à identificação do vínculo afetivo, tanto que a moderna doutrina fala de uma despatrimonialização do direito privado, de modo a bem demarcar a diferença entre o atual sistema em relação àquele de 1916, patrimonialista e individualista[2].
Mantença da separação
Antes o casamento era indissolúvel, as pessoas, no máximo, podiam se desquitar – e cabe lembrar que os desquites, ainda que amigáveis, eram submetidos a reexame necessário. Com o advento da Lei do Divórcio, tributo que devemos à ingente luta do Senador Nelson Carneiro, surgiram duas modalidades de “descasamento”. Primeiro as pessoas se separam, o que rompe os direitos e deveres, mas não rompe o casamento, e só depois é que podem se divorciar, estágio em que resgatam as pessoas a possibilidade de voltar a casar. Assim, a separação é quase um limbo, em que a pessoa não está mais casada, mas não pode casar de novo, e nesse estado deve permanecer por um ano para só depois poder-se libertar pelo divórcio. A sociedade conjugal termina pela separação (art. 1.571, III), mas só o divórcio e a morte dissolvem o casamento (§ 1º do art. 1.571).
É de questionar-se: por que a mantença da separação? Por que não podem as pessoas, no momento em que o “príncipe vira sapo”, simplesmente romper com o casamento? Por que o estabelecimento de um prazo para se pôr fim ao casamento, ainda que ambas, consensualmente, não mais queiram continuar casadas? Que legitimidade tem o Estado para impor que permaneçam unidas pessoas que não mais se amam?
Só se pode concluir que ainda permanece a prevalência do interesse na preservação da família sobre o interesse das pessoas. Por outro lado, como a Constituição determina que a lei busque transformar a união estável em casamento e a condição de separado impede o casamento, a permanência da separação não afrontaria a recomendação legal?
Culpa
A mesma perplexidade persiste com referência à necessidade da identificação de um culpado para que se rompa o vínculo marital, quer para propor a anulação do casamento (art. 1.654), quer para pedir a separação (art. 1.572), só se conferindo ao “inocente” o direito de buscar o fim do casamento.
A postura é nitidamente punitiva. Quase que impõe a pena de morte ao culpado, pois quem não tem condições de se manter pode morrer de inanição.
Agora o § 2º do art. 1.694 mitiga um pouco essa sentença de morte, ao deferir alimentos indispensáveis à subsistência quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem pleiteia.
Mas que juiz pode identificar o culpado pelo fim do amor? Quando e quem a ele deu causa? Como provar, por exemplo, o carinho que não foi feito e que quem sabe foi o que levou ao desencantamento, às mágoas, que se transformaram em frustrações, brigas e até em agressões? Ainda que tenha o Estado interesse na preservação da família – a quem delega a função de formar o cidadão -, de todo descabida a intromissão de terceira pessoa, no caso o juiz, para considerar o motivo como suficiente a por fim à relação.
Ao contrário do que sustenta o ilustre relator, tal matéria é de órbita constitucional, podendo ser suprimida. Infringe o cânone maior da Constituição, que é a garantia do direito à privacidade e à intimidade, impor que seja revelado o comportamento, a maneira de as pessoas viverem no interior de seus lares. O casamento não outorga a qualquer dos cônjuges o direito à invasão dessa auréola de privacidade. Portanto, de todo incabível que, para o seu desfazimento, imponha a lei a um o ônus de expor a vida do par; mais, é indevida, é inconstitucional tal ingerência na vida privada.
Nome
Como grande novidade, o art. 1.565, § 1º, faculta a qualquer dos cônjuges adotar o nome do outro. Novidade? Inexiste qualquer vedação na Lei dos Registros Públicos que o impeça.
Ora, se facultado a qualquer do par, quando do casamento, adotar o nome do outro, a partir do casamento o nome de um passa a ser também do outro. Ou seja, para se ficar na exceção, se adota o marido o nome da mulher, este passa a ser o seu nome e a servir para sua identificação. A pessoa, ao adotar outro nome, este integra seu direito à identidade. Assim, o nome não mais é do outro, passa a ser o seu. O nome não tem dono. Nada justifica que seja impositiva a perda de um atributo da própria personalidade, pelo fato de haver o rompimento da vida em comum. Ainda mais que a honra é um atributo pessoal, e a postura de um não pode se refletir na imagem do outro, a não ser que se considere que um é propriedade do outro.
Portanto, infringe sagrado princípio constitucional impor a perda de um atributo da personalidade, que é o nome, cuja alteração decorreu de permissivo legal, concessão outorgada, mas não de forma condicionada. Assim, descabida a possibilidade de assegurar o direito de escolha de continuar a usar o nome só ao cônjuge inocente. Para o culpado permanecer usando o nome – possibilidade inovadora do art. 1.578 – depende da concordância do outro, ou seja, é quase um favor concedido pelo “dono” do nome.
Bem de família
Ainda que a Constituição outorgue especial proteção à família, sua maior responsabilidade é com o cidadão. O enfoque central do ordenamento jurídico, ditado pela Constituição Federal, é a proteção do ser humano.
Assim, a possibilidade de constituição como bem de família exclusivamente da sede onde reside uma entidade familiar é descabida. Fere o princípio da igualdade deixar à margem da lei, e, por conseqüência, ao relento, o indivíduo que por opção ou contingência vive só ou mantém um relacionamento que prefiro chamar de homoafetivo.
Ao depois, cabe observar que só no primeiro dispositivo que trata do tema (art. 1.711) é outorgada a possibilidade de sua instituição ao cônjuge ou à entidade familiar. Em todos os outros dispositivos, a regulamentação usa só a expressão cônjuge. Como interpretar tal limitação ante a conceituação plural do conceito de família, que outorga igual proteção aos conviventes da união estável e às famílias monoparentais?
Regime de Bens
Outra previsão cuja reprodução não se justifica é a imposição do regime da separação legal de bens, quando as pessoas casam descumprindo as ordens legais, ou seja, quando não atendem à “recomendação” de não casar. Ora, nitidamente punitiva a previsão legal, pois parece que a lei quer se vingar da desobediência, impedindo a liberdade de decidir sobre seus bens (art. 1.641).
Mas talvez a mais esdrúxula reprodução seja a da regra que impõe o regime da separação de bens sem a comunicação dos aqüestos face à idade dos nubentes. A única equalização foi quanto à idade. Até agora – e esta minha frase ecoou em todo o Brasil – nós mulheres somos idiotas a partir dos 50 anos, mas daqui para frente todos passaremos a ser imbecis aos 60. Bela vantagem: ganhamos nós mulheres mais 10 anos de higidez mental.
A evolução da ciência passou a buscar e a encontrar meios de cada vez mais aumentar, não só a quantidade de vida, mas principalmente a sua qualidade. Cada vez as pessoas vivem mais e melhor, e a expressão terceira idade já é um termo tido por pejorativo. Que preconceito é este de presumir a lei, de forma absoluta, que a partir de determinada idade somos incapazes de despertar o amor de alguém? Será que aos 60 anos se perde a capacidade de viver um amor verdadeiro? Será que toda aproximação configura interesse de ordem patrimonial, “será um golpe do baú”? E por que se preocupa o Estado em proteger os “velhinhos” para que não sejam alvos de aventureiros ou interesseiros?
De outro lado, por que alguém que trabalhou uma vida inteira, formou seu patrimônio, não pode livremente dele dispor, escolhendo o regime de bens que lhe aprouver? De todo injustificável, e flagrantemente inconstitucional, a intervenção do Estado em impor o regime de bens aos nubentes. Nessa hipótese, que bem quer a lei tutelar? Ao certo o patrimônio da família, ou seja, será que quer garantir o direito à herança de pessoa viva?
Ao depois, a norma peca por inconstitucionalidade de outra ordem, ao ferir o princípio da isonomia, pois privilegia as relações estáveis dos idosos. Se o par resolver casar, pelo regime que a lei impõe, não pode dividir nem o patrimônio amealhado durante a vida em comum. Mas tal vedação inexiste se a relação for estável. Portanto, está-se privilegiando um vínculo em relação ao outro.
União estável
Com referência à união estável, coerente e pertinente ter sido afastado o tempo para sua configuração, pois de todo descabida foi a tentativa de estabelecer requisito temporal para a configuração da união estável, delimitação que nunca foi posta pela jurisprudência, que foi quem construiu essa figura jurídica. Igualmente não consta prazo no texto constitucional, que emprestou juridicidade ao instituto.
Cabe lembrar a Lei nº 8.971/94, primeira a regulamentar dita entidade, que estipulou como conditio sine qua non ao reconhecimento da união o requisito temporal de 5 anos ou a existência de prole. Porém, tais foram as críticas que esse dispositivo sofreu, que antes de ano e meio de sua vigência foi promulgada a Lei nº 9.278/96 afastando o fator tempo. Com certeza, melhor foi ter copiado a definição consolidada na legislação infraconstitucional. O estabelecimento de parâmetros objetivos para regular relações que nascem dos fatos acabaria relegando à margem do manto legal um sem-número de situações que não se poderia deixar de identificar como entidade familiar.
No entanto, todos os parágrafos que integram esse dispositivo, mediante remissões aos impedimentos dirimentes e impedientes ao casamento, visam a restringir a possibilidade do reconhecimento da união estável às pessoas desimpedidas de casar, ou seja, quando estiver um dos conviventes separado de fato ou judicialmente.
Temo que a volta do dever dos cônjuges de vida em comum no domicílio conjugal (inciso II do art. 1.566) traga reflexos para o reconhecimento da união estável, passando a ser requisito para tal a residência sob o mesmo teto, pressuposto esse afastado pela jurisprudência e não contemplado na lei atual.
Concubinato
Nítida a tentativa de excluir da proteção legal o que se chama, em sede doutrinária, de concubinato adulterino, impuro, de má-fé ou concubinagem, tanto que acabou o texto ressuscitando a figura do concubinato no art. 1.727, sepultada, em boa hora, pela nova ordem constitucional.
Só que criar um instituto e nada dizer sobre ele revela uma postura meramente punitiva. Se um do par deixa de cumprir o dever de fidelidade – aliás, não previsto no art. 1.724 – e mantém um duplo vínculo familiar, afronta o consagrado sistema da monogamia, um dos princípios basilares da organização social. Logo, é injustificável que quem assim age seja beneficiado. Ao vetar-se a possibilidade do reconhecimento de uma entidade familiar, se estará subtraindo os efeitos patrimoniais do vínculo que, com o respaldo social ou não, existiu. Isso só beneficiaria o parceiro adúltero, que não dividiria o patrimônio amealhado inclusive com a colaboração mútua.
Se a pretensão é ressaltar que tal situação não deve ser inserida no âmbito do Direito de Família, por configurar uma sociedade de fato, então deveria ser regulada no Código das Obrigações. E, se esta é a intenção, de todo descabido inserir-se nas normas que tratam da família instituto que se pretende seja inserido em outra sede, sendo no mínimo heterotópica…
Ainda que se tenha por inquestionado que as demandas merecem tramitar nas Varas de Família – resistência que ainda existe, em alguns Estados, apesar da expressa previsão legal -, recomendável seria insistir na indicação da competência, sob pena de interpretar-se que se trata de “silêncio eloqüente do legislador” para afastar as demandas envolvendo a união estável das Varas especializadas.
Ao depois, com a supressão de diplomas legais explicitando direitos decorrentes da Constituição Federal, o silêncio do Código implicaria retrocesso, caracterizando verdadeira inconstitucionalidade por omissão, se nem vierem os novos dispositivos a assegurar os mesmos direitos.
Igualmente preocupa o silêncio do Projeto com referência ao direito a alimentos. Só há a menção no art. 1.694 – que fala em conviventes. Talvez não baste tal previsão, sendo mais seguro uma especificação explícita, que garanta o reconhecimento da permanência do direito a alimentos entre os companheiros, já que tal previsão consta expressamente na Lei.
Também não é estabelecida a presunção de colaboração mútua na aquisição dos bens. Talvez não baste a determinação de aplicação supletiva do regime da comunhão parcial dos bens. Tal lacuna pode afastar o reconhecimento do estado condominial, com partição igualitária do patrimônio.
Tais ponderações têm pertinência pelo fato de que, com a nova lei, ficará derrogada toda a legislação esparsa, havendo um sério risco de a jurisprudência deixar de reconhecer ditos direitos. Isso seria um sério golpe, principalmente para as mulheres que ainda não detêm a titularidade dos bens e são quem mais necessitam de alimentos.
Direitos sucessórios
Apesar do esforço em não afrontar a norma constitucional, que impõe o reinado da igualdade, em sede de direitos sucessórios acabou seriamente violado esse cânone maior. O art. 1.790 produz verdadeiro retrocesso ao direito dos conviventes, direitos já consolidados na legislação infraconstitucional.
De todo descabida a restrição dos direitos sucessórios aos bens adquiridos na vigência da união estável, o que desiguala, inconstitucionalmente, os direitos dos companheiros e o dos cônjuges.
Igualmente indevido excluir da parceria estável a condição de sucessor necessária, a que foi guindado o cônjuge (inciso III do art. 1.829), gerar disparidade de tratamento que não se justifica.
O art. 1.829 estabelece que o cônjuge concorre com os descendentes, mas aos companheiros somente concede o mesmo direito se concorrerem com os filhos comuns. Limita à metade o quinhão se os herdeiros forem filhos só do autor, distinção que não é feita quanto ao vínculo matrimonial. O tratamento desigual conferido ao cônjuge e ao parceiro não se justifica, tendo em vista o reconhecimento da união estável como entidade familiar.
A disparidade prossegue no que diz com o direito real de habitação deferido somente ao cônjuge (art. 1.831), bem como ao subtrair do parceiro sobrevivente a garantia da quarta parte da herança, benesse assegurada ao cônjuge sobrevivo se concorrer com os filhos comuns (art. 1.832). Indevido excluir o direito real de habitação e a garantia da quarta parte da herança, se concorrer com os filhos comuns, direitos deferidos ao cônjuge (arts. 1.829 e 1.831).
Mesmo passando o cônjuge à condição de herdeiro necessário, são-lhe assegurados o direito real de habitação (art. 1.829) e o quinhão hereditário não inferior à quarta parte da herança (art. 1.832).
É de lembrar que ambas as leis regulamentadoras da união estável deferem direitos outros, não contemplados no código projetado. A Lei nº 8.971/94 garante o direito de usufruto da metade ou da quarta parte da herança, a depender da existência de filhos do de cujus. Já a Lei nº 9.278/96 assegura o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família.
Como o novel estatuto irá disciplinar com exclusividade a matéria, restando derrogada toda a legislação esparsa, há sério risco de a jurisprudência deixar de reconhecer ditos direitos. Isso será extremamente injusto, principalmente para as mulheres que ainda não detêm a titularidade dos bens. Trata-se, pois, de severa limitação às relações extramatrimoniais. Não prospera a justificativa do relator – de que a união estável é instituição-meio, enquanto o casamento seria instituição-fim – para dar prevalência à relação matrimonial sobre o relacionamento estável. Essa predileção, inegavelmente, afronta o princípio da igualdade, base da ordem constitucional, que equiparou a união estável e o matrimônio como entidades familiares, sem distinções de ordem patrimonial.
Tendo a Constituição Federal rompido o modelo exclusivamente matrimonializado da família, deferindo status de família à união estável, descabe qualquer tratamento discriminatório entre ambas as entidades familiares.
A supressão do direito real de habitação, que surgiu porque a família existiu e o imóvel foi utilizado como seu abrigo[3], constitui ofensa à norma da Constituição de tratamento isonômico à entidade familiar, fere frontalmente o princípio constitucional da igualdade. O casamento e a união estável guardam igualdade quanto ao regime legal dos bens.
Uniões homoafetivas
Se a realidade social impôs o enlaçamento das relações afetivas no Direito de Família, e estando a moderna doutrina e a mais vanguardista jurisprudência a definir a família pela só presença de um vínculo afetivo, não mais se justifica deixar de identificar como espécie desse gênero também as relações homoafetivas.
Mudaram os paradigmas da família e deixou de ser o casamento seu traço identificador. Esta não mais tem por finalidade precípua e exclusiva a função reprodutiva – quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos, quer pela evolução da engenharia genética. Deixar à margem da lei os vínculos afetivos que não se definem pela diferença do sexo do par, embora haja convivência duradoura, pública e contínua, com objetivo de constituição de família, é uma omissão nitidamente preconceituosa e discriminatória, pois, como bem disse o Deputado Ricardo Fiúza, a lei atende ao novo conceito de família.
Publicado em 17/07/2003.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família
www.mariaberenice.com.br
[2] TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:Renovar, 1999, p.438).
[3] CZAIKOVSKU, Rainer. União Livre. Curitiba:Juruá, 1999, p. 175).