Maria Berenice Dias[1]
A lei não consegue acompanhar o desenvolvimento social cada vez mais acentuado, sendo as relações afetivas as mais sensíveis à evolução dos valores e conceitos. Dada a aceleração com que se transforma a sociedade, elas escapam ao direito positivado, não tendo o legislador condições de prever tudo o que é digno de regramento.
Compete ao Judiciário colmatar as lacunas que acabam existindo. Para tanto, deve estar consciente de que as regras legais existentes não podem servir de limites à prestação jurisdicional. Se o fato sub judice se apresenta fora da normatização ordinária, a resposta precisa ser encontrada, não só na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito, como ordena a lei civil, mas principalmente nos direitos e garantias fundamentais, que servem de base ao estado democrático de direito.
Imperioso que os juízes sejam criativos, encontrando soluções que – atentas aos ditames de ordem constitucional – assegurem o respeito à dignidade da pessoa humana, calcado nos princípios da liberdade e da igualdade.
Ante situações novas, a busca de subsídios em regras ditadas para outras relações jurídicas tende a soluções conservadoras. Por outro lado, não reconhecer direitos sob o fundamento de inexistir previsão legal, bem como usar de normas vertidas para situações outras, em diverso contexto temporal, nada mais é do que mera negação de direitos. Assim, é dever da jurisprudência inovar diante do novo.
O paradoxo entre o direito vigente e a realidade existente, no confronto entre o conservadorismo social e a emergência de novos valores, coloca os operadores do Direito diante de um verdadeiro dilema para atender à necessidade de implementar os direitos de forma ampliativa.
Frente as novas estruturas sociais, necessária uma revisão crítica e a atenta reavaliação dos textos legais, para alcançar a tão decantada igualdade. Nesse contexto, é fundamental a missão dos juízes. Imperioso que tomem consciência de que lhes é delegada a função de agentes transformadores dos valores jurídicos que – estigmatizantes – perpetuam o sistema de exclusão social.
O surgimento de novos paradigmas conduz à necessidade de rever os modelos preexistentes, atentando-se na liberdade e na igualdade como os pilares do Direito, assentados no reconhecimento da existência das diferenças. Essa sensibilidade deve ter o magistrado. Hoje, a necessidade de assegurar em plenitude os direitos humanos, tanto subjetiva como objetivamente, tanto individual como socialmente, torna imperioso pensar e repensar a relação entre o justo e o legal.
O que é aceito pelos tribunais como merecedor da tutela jurídica acaba recebendo a aceitação social, o que gera, por conseqüência, a possibilidade de cobrar do legislador que regule as situações que a jurisprudência consolida.
Precisam os juízes enfrentar as novas realidades que lhes são postas à decisão. Não ter medo de fazer justiça para manter longe da realidade a pecha de ser o Judiciário um poder incompetente e sacralizador de injustiças.
Publicado em 14/07/2003.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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