Maria Berenice Dias[1]
Os crimes contra a liberdade sexual foram chamados “delitos contra os costumes”, como se o bem tutelado fosse a sociedade e não a inviolabilidade corporal da mulher. Igualmente, a Lei nº 9.099, de 26/9/95, que criou os Juizados Especiais, condicionou o delito de lesão corporal leve e culposa à representação do ofendido, transmitindo à vítima a iniciativa de buscar a punição do agressor. Assim, os ilícitos domésticos, quando o agressor é marido ou companheiro da vítima, praticamente se tornaram crimes invisíveis.
Mas tudo isso não basta para evidenciar que a Justiça mantém um viés discriminatório e preconceituoso quando a vítima é a mulher.
A Lei nº 8.072/90 qualificou certos crimes como “hediondos” e, além de majorar as penas, impediu a progressão do regime de seu cumprimento. Modo expresso, os incisos V e VII do art. 1º elencaram como hediondos o estupro e o atentado violento ao pudor, bem como a forma qualificada de ambos.
Publicada essa Lei, pôs-se em dúvida sua constitucionalidade, pois o inc. XLVI do art. 5º da Constituição Federal assegura a individualização da pena. Porém, o Supremo Tribunal Federal, em decisão plenária e unânime, já declarou que a lei é constitucional. Assim, ou a lei é constitucional e deve ser aplicada em todas as hipóteses expressamente elencadas ou, se julgada inconstitucional, não pode ser invocada em nenhum caso. Mas, de forma inusitada, o Supremo Tribunal Federal, em 8/6/99, decidiu que o atentado violento ao pudor só é crime hediondo, se resultar em lesão corporal grave ou morte.
Essa posição fez seguidores; e recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, revisando condenação imposta antes dessa decisão, permitiu a progressão do regime, acolhendo a orientação de que o “estupro simples” não é hediondo.
Foi esquecida, assim, recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, que em 2/4/2001 referiu: Basta que o estupro ou o atentado violento a pudor tenha sido cometido mediante grave ameaça ou violência real, independentemente de ter resultado morte ou lesão corporal grave, para que se imponha o reconhecimento do caráter hediondo da ação criminosa. Essa, a melhor orientação. Mas não foi adotada.
Em conseqüência, ocorreu verdadeira banalização dos delitos contra a mulher, o que, além de ensejar uma enxurrada de pedidos de revisão, acabou cometendo verdadeiro estupro contra a Lei.
Publicado em 11/07/2003.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
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