Maria Berenice Dias[1]
Até o advento da Constituição Federal de 1988, para o legislador ordinário, as relações entre homens e mulheres só existiam dentro do casamento, havendo um severo repúdio ao reconhecimento de quaisquer vínculos outros não chancelados pelo matrimônio.
Apesar da nítida postura da lei pátria de proteger com exclusividade as relações afetivas fruto do casamento, não conseguiu represar uma nova textura social decorrente de relacionamentos surgidos à margem da figura nominada inclusive como uma instituição.
A omissão legal impôs aos juízes buscar soluções outras, fazendo uso da analogia com distintos institutos jurídicos, como forma de compor as situações que batiam às portas do Judiciário, já que, pela estrita aplicação da lei, receberiam soluções absolutamente injustas.
Em um primeiro momento, em face da atividade desempenhada pela companheira no âmbito do lar, começou-se a enxergar um vínculo laboral. Ainda que não se cogitasse, durante a subsistência da união, da cobrança por serviços e favores prestados, pela presença do vínculo afetivo, quando do rompimento da relação se passou a conceder uma indenização como forma de compensar a mulher pelos anos dedicados ao lar e aos filhos, sem qualquer gratificação de caráter econômico. Em um momento posterior, reconheceu-se nas relações concubinárias a existência de verdadeiras sociedades de fato entre os parceiros, a ensejar direitos patrimoniais e conseqüente partilha dos bens, quando do rompimento do vínculo.
Somente com a Constituição Federal de 1988 é que houve a juridicização das relações fora do casamento. Com o nome de união estável, passaram as relações extramatrimoniais a merecer a proteção especial do Estado. Foi reconhecida nova dimensão ao conceito de família, que passou a abranger as relações entre um homem e uma mulher fora do casamento.
Apesar do respaldo constitucional, nenhum avanço ocorreu. Além de não ter havido qualquer reformulação legislativa, também na órbita dos tribunais não houve progresso em relação ao tratamento anteriormente outorgado às chamadas relações concubinárias. Nenhum outro direito foi reconhecido ou dever foi imposto além da já consagrada partilha dos bens adquiridos durante a convivência. Os raros julgados que ousaram introduzir algum avanço, como a concessão de alimentos ou direito ao usufruto, não conseguiram produzir qualquer melhoria na posição jurídica dos concubinos.
Consolidaram-se como instituto jurídico as uniões estáveis protegidas constitucionalmente com o advento da Lei nº 8.971/94, que, além da previsão do direito a alimentos entre parceiros, os incluiu na ordem de vocação hereditária.
Essa Lei, que, efetivamente, foi um avanço, representou também um retrocesso, na medida em que reconheceu a existência de um companheirismo somente entre pessoas desimpedidas de casar, ou seja, solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos. De outro lado, estabelecido o prazo mínimo de cinco anos ou a existência de filhos comuns para a configuração da união, ficaram à margem da lei uma extensa gama de relações, por não atenderem os pressupostos legais. O legislador, restringindo e marginalizando algumas relações, ao negar direitos sucessórios, usufruto dos bens e alimentos, acabou operando um retrocesso aos avanços que a jurisprudência vinha forjando, sem limitações de tempo de convivência e ao estado civil do par.
Noemia Alves Fardim justifica por que considera falha a definição legal: Em nossa sociedade é comum haver uniões estáveis entre pessoas que estão separadas de fato de seus ex-cônjuges há muitos anos e constituem família e patrimônio (sociedade de fato) com outra pessoa. Seria injustiça negar direito a quem verdadeiramente merece. O enriquecimento ilícito é vedado pelo Direito.[2]
A recente Lei nº 9.278/96, que expressamente regula a norma constitucional consagradora da união estável, ao conceder alimentos e direito de habitação e reconhecer o condomínio dos bens adquiridos em comum, foi sensível aos reclamos que se fizeram ouvir, não estabelecendo qualquer pressuposto de caráter temporal. Traz um novo conceito de união estável, subtraindo a exigência do lapso de cinco anos de convivência[3] ou a existência de filhos, bem como afasta a restrição sobre o estado civil dos parceiros. Sem dúvida alguma, acertou a Lei em não estabelecer prazo ou perquirir o estado civil dos conviventes. Mas estabeleceu requisitos outros, delegando o reconhecimento da união ao poder discricionário do juiz, que, em cada caso concreto, irá identificar os elementos de permanência, notoriedade, afetividade e comunhão de interesses, para flagrar a existência da união apta a gerar direitos. Como bem observa João Batista Arruda Giordano, a missão de definir a união estável é dos Tribunais, e não do legislador.[4]
Porém, como não houve expressa revogação da legislação pretérita, estando o direito sucessório regrado somente na Lei anterior, incontestavelmente, no momento, há uma dupla normatização legal a regular a união estável. A Lei nº 9.278/96 regula os alimentos e o regime dos bens adquiridos em comum, enquanto a Lei nº 8.971/94 continua normando os direitos sucessórios. A omissão do novel diploma não pode levar, por óbvio, à conclusão de que foi afastado o companheiro da ordem de vocação hereditária, subtraindo-lhe, assim, a possibilidade de herdar.
Ainda que haja uma dualidade de leis a deferir distintos direitos, mister que se reconheça que o conceito de união estável é único, merecendo ser definido como tal o que exclusivamente atende aos pressupostos postos no novo diploma.
Mesmo que a Lei nº 8.971/94 não haja cunhado um conceito de união estável, acabou por estabelecer pressupostos para o reconhecimento de sua existência, a fim de que os companheiros façam jus aos direitos que concede. Já a Lei nº 9.278/96, que, modo expresso, vem regulamentar a norma constitucional, ao estabelecer pressupostos outros, de distinta natureza e com maior flexibilidade, restou por plasmar um conceito de união estável, que serve para a concessão dos direitos previstos em qualquer dos regramentos legais que atualmente regem o que hoje já se pode chamar de instituto jurídico do concubinato.
Os comentadores da Lei atual, entre eles Rainer Czajkowski[5] e Sérgio Gischkow Pereira,[6] têm-se inclinado no sentido de que o conceito de união estável posto na Lei nº 9.278/96 serve apenas para os efeitos nela previstos e, quanto aos direitos sucessórios, a definição de união estável estaria ainda na Lei nº 8.971/94. Não existe, para Sérgio Gischkow Pereira, nenhuma contradição normativa na matéria, visto que ambas as leis e conceitos coexistem para regramentos distintos. Ocorre apenas uma aparente duplicidade de tratamento, e não uma incoerência na lei.
Há que reconhecer nessa postura ainda um traço por demais conservador, pois, como bem observa Marilene Silveira Guimarães, esta ideologia está inconscientemente calcada nas decisões e trabalhos doutrinários da maioria dos juristas brasileiros, que ainda resistem em reconhecer à família informal os mesmos direitos e obrigações decorrentes do casamento.[7] Assim, alijar do direito à herança algumas uniões, a depender do tempo de convívio e do estado civil, faz ressurgir toda a controvérsia que ensejou as pressões que levaram à inserção da relação concubinária na Carta Magna.
De outro lado, necessário que se atente, também, em que dito posicionamento, no que diz com o direito à meação, acaba tratando de maneira mais benevolente – pois concede mais direitos – as relações mais “frágeis”, que são as previstas na Lei nº 9.278/96. Pela Lei nº 8.971/94, para o reconhecimento do direito à metade dos bens, é necessária a comprovação de que tenha havido a colaboração do sobrevivente na formação do patrimônio (art. 3º). No entanto, em se tratando de uma união de pessoas impedidas de casar, e ainda que não perdure a união por cinco anos ou não tenha gerado prole, ocorrerá sempre a partilha igualitária dos bens. É que, sob a égide do chamado Estatuto dos Concubinos, Lei nº 9.278/96, a presunção do estado condominial do patrimônio é absoluta, uma vez que a exceção, posta no § 1º do art 5º, é exclusivamente a prova de que a aquisição do bem ocorreu com o produto de bens existentes anteriormente à união. Somente nessa única hipótese é que se afasta a previsão de que os bens foram fruto do trabalho e da colaboração comum, não se abrindo qualquer outra possibilidade de que se discuta a participação ativa dos conviventes para efeitos de partilha.
Finalmente, não há como se prender apenas à redação do dispositivo legal, que reconhece direitos sucessórios unicamente às pessoas referidas no artigo anterior. Além de ser uma técnica interpretativa muito restrita, pela letra da lei também a concessão dos direitos hereditários estaria condicionada a quem fosse merecedor de alimentos. Ora, se, atualmente, para fazer jus a alimentos, distintos são os pressupostos legais, por conseqüência também se encontram alterados os requisitos para a concessão dos demais direitos. Não se pode, portanto, conceder sobrevida a um conceito que não mais vige. Cunhada uma nova definição legal, esse é o que vigora para todos os efeitos.
O atual e único conceito de união estável é o estampado no art. 1º da Lei nº 9.278/96, mas os direitos, esses sim, estão postos nos dois diplomas, tendo havido apenas uma ampliação no leque de conseqüências decorrentes das relações fora do casamento.
O direito à herança está na primeira Lei (art. 2º da Lei de 1994). Não foi revogado nem é incompatível com o direito real de habitação, assegurado no art. 7º da Lei de 1996, como afirma Rainer Czajkowski.[8] Merece relembrar, no entanto, que o direito é de ser deferido a quem se enquadra na condição de conviventes, definição essa que consta da Lei nº 9.278/96, não mais se podendo falar em subsistência dos requisitos do art. 1º da Lei nº 8.971/94. Portanto, o direito sucessório na união estável é regido por ambas as leis. O companheiro sobrevivente passou a integrar a ordem de vocação hereditária, além de dispor do direito ao usufruto dos bens, em percentual a depender da existência ou não de filhos (art. 2º da Lei nº 8.971/94). Concomitantemente, faz jus ao direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família (parágrafo único do art. 7º da Lei nº 9.278/96).
Mister reconhecer também que restou consagrado o direito à meação, com partilha dos bens em partes iguais. O art. 5º da Lei nº 9.278/96 afastou o requisito da necessidade de comprovar que os bens resultaram da colaboração do companheiro, conforme previa o art. 3º da Lei nº 8.971/94. O estado condominial decorre de presunção iuris et de iure, pois não contemplada qualquer possibilidade de excepcionar-se a regra de que os bens móveis e imóveis são fruto do esforço comum. Nas palavras de Álvaro Villaça de Azevedo, a simples convivência concubinária pura assegura aos conviventes o direito de propriedade em igualdade de condições sobre os bens adquiridos, onerosamente, na constância do concubinato, salvo prova escrita em contrário.[9]
Se a sociedade muda e as relações entre as pessoas evoluem, as leis, para cumprirem seu papel de regrar a vida e estabelecer pautas de conduta, também têm que se plasmar às novas realidades. Da mesma forma, devem os operadores do Direito interpretá-las com uma visão que mais se identifique com a justiça.
Publicado em 30/06/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
www.mariaberenice.com.br
[2] FARDIM, Noemia Alves. Concubinato – Aspectos sociojurídicos da união estável, P. Alegre: Livraria do Advogado. 1993, p. 43.
[3] Cabe lembrar que nem mais a legislação previdenciária (Lei da Seguridade Social; Lei nº 8.213/91 – Planos e Benefícios da Previdência Social; e Dec. nº 357/91- Regulamento dos Benefícios) fixa um prazo mínimo como requisito da estabilidade da relação para a concessão de benefícios.
[4] GIORDANO, João Batista Arruda. A União Estável. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS, P. Alegre, vol. 45, 1989, p. 253.
[5] CZAJKOWSKI, Rainer. União Livre à Luz da Lei 8.971/94 e da Lei 9.278/96, Curitiba: Juruá Editora, 1ª edição – 2ª tiragem, 1996, p. 143.
[6] Conferência realizada no dia 20.08.1996 na sede do IARGS.
[7] GUIMARÃES, Marilene Silveira. O Direito Sucessório após a Constituição Federal de 1988, Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS, P. Alegre, v. 60, 1994, p. 145.
[8] Op. cit p. 143
[9] Revista Literária de Direito, Ano II – Número 11 – Maio/Junho de 1996, 12.