Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Filiação e Parentalidade

O direito a um pai

Maria Berenice Dias[1]

 

Existe o direito constitucional à identidade,  um dos mais importantes atributos da personalidade.

Todo mundo precisa ser registrado para existir juridicamente, ser cidadão.

Claro que esta é uma obrigação dos pais: registrar o filho em nome dos dois.

A Lei dos Registros Públicos, que é anterior à Constituição Federal e ao Código Civil – e que até hoje não foi atualizada – está prestes a ser, mais uma vez, remendada, sem que com isso venha a atender ao maior interesse de uma criança: ter no seu registro o nome de ambos os pais.

A antiquada lei registral, atribui exclusivamente ao pai a obrigação de proceder ao registro do filho. Somente no caso de sua falta ou impedimento é que o registro pode ser levado a efeito pela mãe, e até por outra pessoa. O dispositivo, editado quando o homem era o cabeça do casal e o chefe da sociedade conjugal, deixou de ter eficácia o por desrespeitar o princípio da igualdade, pois assegurados os mesmos direitos e deveres dos pais para com a prole.  O certo é que nunca houve qualquer impedimento para a mãe proceder ao registro do filho. Ela sempre assumiu tal encargo quando o pai se omite.

O tratamento, aliás, sempre foi discriminatório. Basta o homem comparecer ao cartório, tendo em mãos a Declaração de Nascido Vivo (DNV) para registrá-lo como seu. Já a mãe só pode registrar o filho também no nome do pai se apresentar certidão de casamento. E, se o filho for “ilegítimo” não será declarado o nome do pai a não ser que ele compareça pessoalmente ou por meio de procurador com poderes especiais (LRP, art. 59).

Esta é outra discriminação injustificável. Quando os pais vivem em união estável, mesmo que reconhecida contratual ou judicialmente, nem assim a mãe pode proceder ao registro do nome do pai. Para ele inexiste esta exigência. Consegue registrar o filho sem sequer alegar que vive na companhia da mãe.

A Lei 8.560/92 e as Resoluções 12 e 16 do Conselho Nacional de Justiça, até tentaram chamar o homem à responsabilidade de registrar os seus filhos. Se a mãe indica ao oficial do registro civil quem é o genitor, é instaurado um procedimento, em que o indigitado pai é intimado judicialmente. Caso ele não compareça, negue a paternidade ou não admita submeter-se ao teste do DNA, nada acontece.  Ao invés de o juiz determinar o registro do filho em seu nome, de forma para lá que desarrazoada o expediente é encaminhado ao Ministério Público para ter início à ação de investigação de paternidade. Proposta a ação, o réu precisa ser citado, de nada valendo a intimação anterior, ainda que tenha sido determinada por um juiz.

Às claras que este é o grande entrave para que os filhos tenham o direito de ter um pai. É de todo desnecessária a propositura de uma ação investigatória quando aquele que foi indicado como genitor nega a paternidade e resiste em provar que não é o genitor. Diante da negativa, neste momento deveria o juiz determinar o registro, sem a necessidade de qualquer novo procedimento.

Na hipótese de o pai não concordar com a paternidade, ele que entre com a ação negatória, quando então deverá submeter-se ao exame do DNA. Sequer é necessária dilação probatória, a não ser que o laudo seja inconclusivo.

Agora – de maneira para lá de singela e desatenta – o PLC 16/2013, recém aprovado pelo Senado,  atribui também à mãe a obrigação de proceder ao registro.

O fato é que a mudança pretendida nada vai mudar. Para a mãe registrar o filho em nome de ambos, ainda precisará apresentar certidão de casamento. Caso contrário haverá a necessidade do procedimento administrativo.  Ainda assim, para ocorrer o registro é indispensável que ele assuma a paternidade.

E, no caso de o indigitado pai não comparecer em juízo ou e se negar a realizar o exame do DNA, vai continuar a existir a necessidade da ação investigatória de paternidade, quando sua reiterada omissão não dispõe de qualquer relevo.

Apesar de o Código Civil afirmar que a recusa a exame pericial supre a prova a ser produzida, não podendo quem se nega a realizá-lo aproveitar-se de sua omissão (CC arts. 231 e 232), quando se trata de assegurar o direito à identidade a alguém, tais dispositivos não valem. A recusa do réu de se submeter ao exame de DNA gera mera presunção da paternidade a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório (L 8.560/92, art. 2º-A, parágrafo único). No mesmo sentido a Súmula 301 do STJ, que atribui à negativa mera presunção juris tantum da paternidade.

Ou seja, a alteração legislativa – anunciada como redentora – não irá reduzir o assustador número de crianças com filiação incompleta. Segundo dados do CNJ, com base no Censo Escolar de 2011, há 5,5 milhões de crianças registradas somente com o nome da mãe.

Mais uma vez perde o legislador a chance de assegurar o direito à identidade a quem só quer ter um pai para chamar de seu.

 

 

Publicado em 20/10/2013.

[1] Advogada

Vice Presidenta Nacional do IBDFAM

 

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