Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Casamento

O dever de fidelidade

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Vínculos afetivos não são uma prerrogativa da espécie humana, pois o acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto de perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão à solidão, a ponto de se ter por natural a idéia de que a felicidade só pode ser encontrada a dois, como se existisse um setor da felicidade ao qual o sujeito sozinho não tem acesso.[2] Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se unem por uma relação biológica, trata-se a família muito mais de um grupo cultural, com uma estruturação psíquica em que cada um ocupa um lugar, uma função. Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, é essa estrutura familiar, que existe antes e acima do Direito, que interessa investigar e trazer para o Direito.

Tanto o Estado como a Igreja acabaram se apropriando desse fenômeno, visando, cada uma dessas duas instituições, a atender a seus próprios interesses. Enquanto a Igreja fez do casamento um sacramento, atribuindo-lhe, com a máxima crescei-vos e multiplicai-vos, a função reprodutiva, como forma de povoar o mundo de cristãos, o Estado viu a família como uma verdadeira instituição, pontificando o art. 226 da Constituição Federal: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

A organização da sociedade dá-se em torno da estrutura familiar, e não em torno de grupos outros ou dos indivíduos em si mesmos.[3] O Estado delega à família a formação dos cidadãos, tarefa que acaba quase sempre onerando exclusivamente a mulher, havendo um certo descumprometimento tanto do homem como das entidades públicas e entes governamentais em subsidiar os meios necessários para assegurar o futuro da sociedade assumindo o encargo de formar e educar crianças e  jovens.

Ainda que não haja uma definição na lei do que seja casamento, sempre foi tido como fundamento da sociedade, base da moralidade pública e privada, conforme Laurent[4], gerando o “estado matrimonial”, em que os nubentes ingressam pela vontade, mas sua forma nasce da lei, que estabelece suas normas e seus efeitos. Segundo Salvat, as pessoas têm a liberdade de realizá-lo, mas, uma vez que se decidem, a vontade delas se alheia e só a lei impera na regulamentação de suas relações.[5]

Esse interesse estatal na manutenção do casamento é que, em um primeiro momento, levou à consagração de sua indissolubilidade, à sua obrigatória identificação pelo nome do varão, bem como ao estado universal de comunhão de bens e, por conseqüência, à relativização da capacidade da mulher. Reproduziu o legislador civil o perfil da família do início do século, que se caracterizava como heterossexual, matrimonializada, patriarcal, hierarquizada e patrimonializada. Entre os mútuos direitos e deveres postos no art. 1.566 do Código Civil, o primeiro deles é o de fidelidade recíproca, que representa a natural expressão da monogamia, não constituindo tão somente um dever moral, mas é exigido pelo direito em nome dos superiores interesses da sociedade.[6]

Porém, mesmo sendo indicada na lei como requisito obrigacional a mantença da fidelidade, trata-se de direito cujo adimplemento não pode ser exigido em juízo. Ou seja, desatendendo um do par o dever de fidelidade, não se tem notícia de ter sido proposta, na constância do casamento, demanda que busque o cumprimento de tal dever. Tratar-se-ia de execução de obrigação de não-fazer? E, em caso de procedência, de que forma poderia ser executada a sentença que impusesse a abstinência sexual extramatrimonial ao demandado?

Ademais, se eventualmente não cumprem um ou ambos os cônjuges dito dever, tal em nada afeta a existência, a validade ou a eficácia do vínculo matrimonial. Mas não é só. Cabe figurar a hipótese de não ser consagrado dito dever em norma legal. Seria de admitir-se que deixou de existir e de se poder exigir  a fidelidade, quem sabe o mais sagrado compromisso entre os cônjuges? Deixaria de haver a possibilidade de se buscar a separação se não estabelecido em lei esse direito-dever ou dever-direito dos consortes?

A monogamia – que é só monogamia para a mulher, conforme alerta Engels[7] – não foi de modo algum um fruto do amor sexual individual, mas uma mera convenção decorrente do triunfo da propriedade privada sobre o condomínio espontâneo primitivo. A constituição da família pelo casamento tem por finalidade a procriação de filhos, que têm de ser filhos do patriarca, pois estão destinados a se tornar os herdeiros da sua fortuna. Ainda assim, a monogamia foi um grande progresso histórico, pois é o único em que o amor sexual pode se desenvolver, continua Engels.[8]

Pode-se assim dizer que a fidelidade, enquanto dever de um e direito do outro, vige durante o casamento, mas só serve de fundamento para justificar a busca do seu término. A imputação da culpa pelo descumprimento do dever de mútua fidelidade não permite buscar seu adimplemento durante a constância do vínculo matrimonial, concedendo tão-só um direito à separação.

Vincular a separação ao rígido pressuposto da identificação de um responsável justificava-se no sistema originário do Código Civil revogado, que consagrava a insolubilidade do vínculo matrimonial, que sequer o desquite desfazia. Após a consagração do divórcio, é de se reconhecer a dispensabilidade da imputação de culpa pelo rompimento do vínculo afetivo. Cada vez mais vêm a doutrina e a jurisprudência – atentando na realidade social e muito à frente da estática legislação – desprezando a perquirição da culpa para chancelar o pedido de separação: Basta um dos cônjuges ter por insuportável a vida em comum para dar ensejo ao rompimento do casamento, sendo despicienda a comprovação da culpa de qualquer deles pelo fim do vínculo afetivo.[9] Como assevera Luiz Edson Fachin, Não tem mais sentido averiguar a culpa como motivação de ordem íntima, psíquica. Objetivamente é possível inferir certas condutas, não raro atribuídas, de modo preconceituoso, mais à mulher que ao homem. A conduta, porém, pode ser apenas sintoma do fim.[10]

Basta a simples manifestação de vontade de um para ensejar o término do casamento, sem a necessidade de imputar ao outro a responsabilidade pelo fim do amor, e nem mesmo para fins alimentares se mantém a necessidade de perquirição da culpa. Não é pressuposto para sua concessão a “inocência” do par, bastando comprovar a necessidade de um de perceber e a possibilidade do outro de alcançar-lhe alimentos, como forma de preservação da dignidade da pessoa humana, mesmo que esta pessoa não tenha sido digna na sua relação interpessoal…[11]

Portanto, se a fidelidade não é um direito exeqüível e a infidelidade não mais serve como fundamento para a separação, nada justifica a permanência da previsão legislativa, como um dever legal, até porque ninguém é fiel porque assim determina a lei, ou deixará de sê-lo por falta de uma ordem legal. Não é a imposição legal de normas de conduta que consolida ou estrutura o vínculo conjugal, mas simplesmente a sinceridade de sentimentos e a consciência dos papéis desempenhados pelos seus membros que garantem a sobrevivência do relacionamento, como sede de desenvolvimento e realização pessoal.

Não há como deixar de ver que se esboçam novos modelos de família, mais igualitárias nas relações de sexo e idades, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo.[12] Talvez esteja na hora de se abandonar a expressão “cônjuge”, que tem origem na palavra jugum, nome dado pelos romanos à canga que prendia as bestas à carruagem, daí o verbo conjugere designar a união de duas pessoas sob o mesmo jugo, a mesma canga. Talvez seja o caso de se resgatar a palavra “amante”, que significa tanto a pessoa que ama como quem é o objeto do amor de alguém, expressão que melhor identifica a razão de as pessoas ficarem juntas, ou seja, porque se amam.

Quem sabe é de se apropriar do conceito de Savatier à “união livre”, pois somente a liberdade enseja a forma mais pura para a mantença de um relacionamento afetivo: não há fidelidade, obediência, assistência obrigatória. Tudo isso, dado por amor, não deve durar senão enquanto puder durar esse amor. Os amantes nenhum compromisso assumem para o futuro; a independência de ambos é sagrada. Nas páginas de sua vida nada se escreve com tinta indelével.[13]

Melhor se o casamento nada mais fosse do que um ninho, em que se estabelecem laços e nós de afeto, servindo de refúgio, proteção e abrigo, pois, como diz Michele Perrot, O que se gostaria de conservar da família, no terceiro milênio, são seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e de amor. Belo sonho.[14]

 

Publicado em 24/11/2009.

 

 

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam

www.mariaberenice.com.br

[2] TURKENICZ, Abraham. A aventura do casal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 6.

[3] BRUNO, Denise Duarte. Mulher e família no processo constituinte de 1988. Tese de mestrado em Sociologia da UFRGS. p. 82.

[4] Apud MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 4. ed.  São Paulo: Saraiva. p. 13.

[5] Apud MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva. p. 16.

[6] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil, 1917. v. 2. p. 110.

[7] in CANEVACCI,  Massimo Dialética da Família Moderna, São Paulo: Brasiliense, 4ª ed., 1985, p. 75.

[8] ob. cit. p. 84.

[9] TJRGS, Apelação Cível 70000507434

[10] Elementos Críticos de Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar. 1999, p. 179.

[11] AURVALLE, Luis Alberto D’Azevedo. Alimentos e culpa na União Estável. in COAD. Edição especial. out/nov. 96, p. 53.

[12] PERROT, Michelle. O nó e o ninho, in Reflexões para o futuro. São Paulo: abril. 1993, p. 81.

[13] Apud MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva. p. 27.

[14] O nó e o ninho, in Reflexões para o futuro. São Paulo: abril. 1993, p. 81.

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