Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Violência doméstica

O aniversário da Maria da Penha 2

Maria Berenice Dias[1]

 

A Lei Maria da Penha está completando um ano. Até o seu advento a violência doméstica não era considerada crime. Somente a lesão corporal recebia uma pena mais severa quando praticada em decorrência de relações domésticas (CP, art. 129, § 9º). As demais formas de violência perpetradas em decorrência das relações familiares geravam no máximo aumento de pena (CP, art. 61, II, letra “f”).

A partir da vigência da nova lei, a violência doméstica não guarda correspondência com qualquer tipo penal. Primeiro são identificadas ações que configuram violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 5º): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.  Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica (art. 5ª, incs. I, II e III): no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas na lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.

Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações que descreve (art. 7º) quando levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas (art. 5). Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso tipificam delitos que desencadeiam uma ação penal.

De qualquer modo, mesmo não havendo crime, mas tomando conhecimento a autoridade policial da prática de violência doméstica, deve tomar as providências determinadas na lei (art. 11): garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deve proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e, quando a vítima solicitar alguma medida protetiva, remeter a juízo o expediente (art. 12).

Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da polícia de tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.

Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática delitiva e não inibe a concessão das medidas protetivas, tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz.

Apesar destas profundas mudanças, passado um ano de vigência da lei, é forçoso reconhecer que os avanços foram pequenos, até porque a aplicação da lei, em face de sua natureza,  exige a criação dos Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Só um juiz especializado  pode atentar à dúplice natureza da violência doméstica, que exige providências muito mais no âmbito do direito das famílias do que na esfera criminal.

Assim, se a atribuição da competência às Varas Criminais buscou marcar o repúdio à forma de como a violência doméstica vinha sendo tratada no âmbito dos Juizados Especiais, a delegação das demandas às varas criminais não lhes concedeu melhor tratamento.

Como aniversários servem para fazer um balanço do que foi feito e planejar o que fazer, este é o melhor momento para se atentar que de nada adiantou a criação da lei se não forem implantados os juizados especializados.

Que esta seja a grande meta até o próximo aniversário.

Só assim teremos o que comemorar!

 

Publicado em 24/09/2007.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

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