Maria Berenice Dias[1]
Será possível falar nos direitos das pessoas LGBTI – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, sem cair em um lugar comum? Afinal, se vive a era dos direitos humanos, em que a dignidade humana, o direito à igualdade e o respeito à liberdade ocupam lugar destacado em praticamente todas as constituições do mundo. Não só as do mundo civilizado.
Cada vez mais aumenta a preocupação pela inclusão de todos no âmbito de tutela dos direitos e garantias fundamentais, principalmente dos excluídos, invariavelmente constituídos pelas minorias. Não há outra justificativa para a discriminação de que são vítimas determinados segmentos da população. Se não correspondessem a parcelas de menor expressão numérica, não seriam marginalizados. E o só fato de serem menos numerosos é que leva quilombolas, índios, gays e lésbicas serem alvos indefesos de discursos raivosos, podendo ser incendiados, espancados e mortos.
Mas ninguém duvida que a homoafetividade é tão antiga quanto a heterossexualidade. Em um primeiro momento a bissexualidade desfrutava de prestígio social. Prerrogativa de mestres, preceptores e militares, era uma honra quando jovens eram por eles escolhidos para a iniciação sexual, pois era a segurança de que se tornariam mais sábios e mais valentes.
O avanço das civilizações, no entanto, por influência religiosa, rotulou a orientação homossexual de homossexualismo, a considerando um pecado, um crime, uma perversão, uma doença. Foi somente em 1993 que a Organização Mundial da Saúde – OMS excluiu a ideia de doença ou transtorno. Com isso o sufixo ismo, que designa doença, foi substituído pelo sufixo dade, que significa modo de ser.
No âmbito do Direito os avanços também são lentos. Até 25 anos atrás nenhum país do mundo emprestava efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo. Parceiros, ainda que convivendo por décadas, não tinham qualquer direito reconhecido. Foi a Dinamarca, no ano de 1989, que admitiu a união civil, ainda assim fora do Direito das Famílias. Há 15 anos os homossexuais não podiam casar. Tal só foi possível a partir de 2001, na Holanda.
No Brasil, os marcos temporais não foram diferentes, ainda que em outro ritmo. Data de 1998 a primeira decisão do STJ reconhecendo a união homossexual como mera sociedade de fato. Os parceiros eram considerados sócios, sendo necessária a prova do aporte financeiro de cada um para a divisão proporcional do patrimônio acumulado durante o período de convívio.
Foi a 15 anos que a Justiça, nominando as uniões como homoafetivas, as reconheceu como entidade familiar, até que o STF, em 2011, conferiu-lhes os mesmos direitos e deveres das uniões estáveis, o que permitiu acesso ao casamento. E o Conselho Federal de Medicina (Resolução 2.013/2013) assegurou aos casais homoafetivos acesso às técnicas de reprodução assistida.
Conforme mostra o detalhado e didático gráfico publicado em ZH (26/2, p. 20) atualmente 16 países do mundo admitem o casamento gay, além de 17 Estados americanos. Na maioria dos outros países a homossexualidade é considerada legal. No entanto, choca o fato de que, na metade dos países africanos e asiáticos, há a possibilidade de prisão, sendo que em quatro a pena pode ser a de morte. Talvez o mais surpreendente é o retrocesso que se tem presenciado. Em Uganda, um dos mais atrasados países africanos, acabou de ser promulgada lei punindo gays com prisão perpétua. No Estado de Arizona, que se situa no país mais desenvolvido do mundo, em nome da liberdade religiosa, lei assegura o direito de conceder tratamento discriminatório a homossexuais.
Este quadro é preocupante também aqui no Brasil, onde o conservadorismo religioso toma conta do Congresso Nacional e não mede esforços para impor sua crença, como se o país não fosse laico, o que significa nada mais do que o respeito a todas as religiões. O ato é que o legislador, escudando-se em alegados preceitos bíblicos, recusa-se a cumprir com o seu mister: fazer leis. Daí a iniciativa da OAB que elaborou o Estatuto da Diversidade Sexual a ser apresentado por iniciativa popular.
Prova deste conservadorismo é o projeto de lei, intitulado de Estatuto da Família, que, de forma oportunista, tenta confundir para embaraçar a tramitação do Projeto do Estatuto das Famílias (PLS 470/2013), elaborado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, que busca o reconhecimento do conceito plural de família, acolhido pela Constituição Federal e definido pela Lei Maria da Penha como uma relação íntima de afeto.
Por mais piegas que possa parecer, é isso que todo mundo busca, todos sonham: o direito à felicidade! Ninguém duvida ser esta a origem de todas as famílias. Cantado e decantado ser improvável, quase impossível ser feliz sem ter alguém para amar, não há como o Estado ou a lei escolher quem as pessoas devem amar, com quem irão ser felizes.
Assim, de nada adianta não ver, não reconhecer, tentar punir e até matar quem só quer ter o direito de ser feliz, seja com quem for, do jeito que quiser. Todas as tentativas de eliminar a população LGBTI impõem que se questione: afinal, quem tem medo de quê? E por quê? Quem tem o dever de representar o povo não pode tentar transformar em lei seus próprios medos.
Publicado em 28/02/2014.
[1] Advogada
Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da OAB Federal