Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Violência doméstica

Maria da Penha, um samba que rima!

Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

 

 

 

Um nome

Maria da Penha não é mais só um nome!

Apesar de sua história ser igual a de muitas Marias, Maria da Penha não se calou.

Durante anos foi vítima de um marido violento.

No começo achou que não era nada mais do que ciúme.

Afinal, o amor tem dessas coisas.

Quando é muito intenso, torna-se possessivo e é bom se sentir amada.

Às vezes a prova do amor vai além dos limites, mas nada que não se possa perdoar, diante de um pedido de desculpas, de uma flor, de uma promessa de que não vai acontecer de novo.

Só que acontece.

Dói de novo, mas vem nova jura de nunca mais.

Além disso, há os filhos. Eles amam o pai e seria muito difícil privá-los não só da companhia, mas de tudo o que ele pode propiciar à família. Afinal é ele o provedor da casa e não haveria como mantê-la sem o auxílio dele.

Também é enorme a dificuldade de aceitar o fim do sonho o amor eterno.

E há o fantasma da solidão.

O medo de enfrentar a vida sozinha.

Mas há mais.

É difícil assumir perante a família, os vizinhos, os amigos a sociedade que o casamento não deu certo.

Melhor mesmo é se calar e aguentar.

 

Uma Lei

Maria da Penha, que nada mais é do que mais uma mulher vítima da violência,  se tornou uma mártir e mudou os rumos deste país.

Ela rompeu a barreira do medo e da vergonha.

Denunciou não só a violência doméstica da que era vítima, mas também a violência de que foi vítima por parte da polícia e do Judiciário.

As agressões que sofreu do marido a deixaram paraplégica, mas o descaso de que foi vítima de parte do Poder Público não tiveram nenhum efeito paralisante.

A omissão da justiça a fez andar, correr, voar e gritar.

Seus ecos foram ouvidos além-mar.

E foi graças a sua coragem de incessantemente denunciar a omissão de como a violência vinha sendo alvo é que surgiu a Lei que não poderia receber outro nome.

A Lei 11.340/2006 foi batizada de Maria da Penha pelo próprio Presidente da República que a sancionou.

Claro que a Lei está sendo tratada como o são as pessoas a quem a lei visa a proteger.

Como as mulheres, a Lei vem sendo mal falada, destratada, difamada e já começou a ser violada e violentada.

Até de inconstitucional está sendo rotulada pela singela razão de tutelar a mulher e não prever a tutela do homem.

No entanto, a Lei veio exatamente para atender ao princípio constitucional da igualdade. Não há nada mais desigual do que tratar igual os desiguais.

A única forma de implementar a igualdade é enxergando a diferença.

Diferença até hoje invisível com relação à violência doméstica.

A lei é enfática, e até repetitiva, ao rejeitar a aplicação da Lei dos Juizados Especiais. Ainda bem, pois doía ouvir que a lesão corporal contra uma mulher é crime de pequeno potencial ofensivo.

Ela tem mais um grande mérito. Acabou com o calvário imposto à vítima que ia na Polícia, registrava a ocorrência. Depois precisava ir para a fila da Defensoria Pública para conseguir uma ficha. Era longa a espera até ser pleiteada a medida cautelar de separação de corpos.

Agora a representação da vítima feita perante a autoridade policial desencadeia dois procedimentos: um de natureza cível, a ser enviado imediatamente a juízo,  e o inquérito policial a ser instaurado pela autoridade policial.

Talvez o traço mais significativo da Lei Maria da Penha é que ela deixa evidente o repúdio pela forma como a violência doméstica era tratada pela Justiça. Nunca ninguém quis ver a violência doméstica, nunca ninguém a encarou com seriedade e nem se preocupou em quantificá-la. Os números sempre foram subnotificados. Sempre foi invisível a violência contra a mulher, pois se trata de delito que parece não afrontar a segurança social, porque acontece dentro do lar.

 

Uma música

Segundo o último levantamento levado a efeito pela Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da República, 85% da população conhece a Lei Maria da Penha e sabe do que ela trata.

Dificilmente uma lei consegue tão elevado índice de popularidade em tão pouco tempo. Muito em decorrência do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência Doméstica e o atendimento feito através do telefone pelo número 180.

Mas também parcela desta popularidade veio com a música Maria da Penha, uma composição de Paulinho Resende e Evandro Lima e tão bem interpretada por Alcione.

 

Comigo não, violão
Na cara que mamãe beijou
Zé Ruela nenhum bota a mão
Se tentar me bater
Vai se arrepender
(…)

Eu te passo a “Maria da Penha”
Você quer voltar pro meu mundo
Mas eu já troquei minha senha
Dá linha, malandro
Que eu te mando a “Maria da Penha”
Não quer se dar mal, se contenha
Sou fogo onde você é lenha
Não manda o seu casco
Que eu te tasco a “Maria da Penha”
Se quer um conselho, não venha
Com essa arrogância ferrenha
Vai dar com a cara
Bem na mão da “Maria da Penha”

 

Um samba que rima

Até o advento Lei Maria da Penha a violência doméstica não era considerada crime. Somente a lesão corporal recebia uma pena mais severa quando praticada em decorrência de relações domésticas (CP, art. 129, § 9º). As demais formas de violência perpetradas em decorrência das relações familiares geravam no máximo aumento de pena (CP, art. 61, II, letra “f”).

A violência doméstica não guarda correspondência com qualquer tipo penal. Primeiro são identificadas ações que configuram violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 5º): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.  Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica (art. 5ª, incs. I, II e III): no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas, mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.

Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações que descreve (art. 7º) quando levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas (art. 5). Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso tipificam delitos que desencadeiam uma ação penal.

Mesmo não havendo crime, mas tomando conhecimento a autoridade policial da prática de violência doméstica, deve tomar as providências determinadas na lei (art. 11): garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deve proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e, quando a vítima solicitar alguma medida protetiva, remeter a juízo o expediente (art. 12).

Todas estas medidas devem ser levadas a efeito diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da polícia de tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.

Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática delitiva e não inibe a concessão das medidas protetivas, tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz.

Enfim, mais do que um nome, uma lei, um samba, Maria da Penha significa uma mudança de comportamento diante de uma realidade que não mais admite rimar amor com dor.

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