Maria Berenice Dias[1]
Ivone M.C. Coelho de Souza[2]
A Lei Maria da Penha apenas completa seus primeiros anos.
Até o seu advento a violência doméstica não era considerada crime. Somente a lesão corporal recebia uma pena mais severa quando praticada em decorrência de relações domésticas (CP, art. 129, § 9º). As demais formas de violência perpetradas em decorrência das relações familiares geravam no máximo aumento de pena (CP, art. 61, II, letra “f”). Um enclave do primitivismo imemorial, representante da sedimentação adversa da figura da mulher em quase todos os setores da vida em sociedade e inclusive na Lei. Quase uma cristalização de Códigos antiqüíssimos, como os orientais, e mesmo o Romano, onde a mulher, propriedade coisificada do marido, podia legalmente ser agredida, desfigurada ou morta.
Mas, desde 2006, ano de sua promulgação no Brasil, uma guerra diferenciada, longa e penosa, vinha sendo travada neste plano, e pela primeira vez, um comando indiscutível se impôs nas muitas frentes de combate: o da própria vítima da violência doméstica. Esta origem, identificada com uma personagem central e concebida a partir de um evento, ou alguns eventos dramáticos no interior doméstico, concede à Lei Maria da Penha um diferencial definitivo.
O texto legal entretanto, nasceu de uma história familiar marcada pela investida destrutiva, abrigada na indiferença e na omissão, vicissitude doméstica ainda longe de ser extraordinária. A bioquímica cearense Maria da Penha Maia foi vítima de várias e cruéis tentativas de homicídio no interior da residência marital, em 1983, sendo que em uma foi atingida por disparos de arma de fogo, tornou-se paraplégica, condição em que vive até hoje. O autor dos ataques, seu marido e colega foi detido e liberado várias vezes (encontra-se hoje em liberdade, após pena de 2 anos de detenção), enquanto persistia na intenção criminosa, até que organizações internacionais pressionassem as autoridades brasileiras a implantar finalmente justiça. Todo este arrastado capítulo de uma verdadeira crônica de morte anunciada redundou na luta de 20 anos pela qual finalmente a lei pode ser promulgada.
Mas desta vez, não apenas estatísticas quase anônimas, mesmo que incontestáveis, ou simples vontade de alguns observadores lúcidos da situação da mulher oprimida em sua própria casa, mas a perseverança, o sofrimento e a capacidade tenaz em reverter um infortúnio pessoal conquistaram o recurso para, com este instrumento legal, abalar a violência, nas várias faces com que flagela não apenas a mulher, mas a família e a sociedade. A vítima que se insurge de fato, também o faz em favor do social, contaminado tantas vezes pelo silêncio e pela omissão relativos aos conflitos familiares desta natureza. Se os movimentos feministas do séc. XX vinham concluindo que nenhuma questão social é alheia ao feminismo, a recíproca então é verdadeira. Nenhuma das questões dos direitos da mulher se afasta do interesse social.
A partir da vigência da nova lei, a violência doméstica foi definida sem guardar correspondência a quaisquer tipos penais. Primeiro é identificado o agir que configura violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 5º): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica (art. 5ª, incs. I, II e III): no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas em lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.
Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações que descreve (art. 7º) quando levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas (art. 5). Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso configuram crimes que desencadeiam uma ação penal.
Da mesma forma, quanto à subjetividade (psicológica, moral), a Lei avança, mais que em qualquer outro momento das tentativas de preservar a integridade da mulher no âmbito doméstico, palco das maiores e mais volumosas agressões. Já não se restringe tão somente às ofensas físicas, comprováveis, investe contra o dano psicológico, a lesão afetiva e suas conseqüências, capazes de provocar seqüelas importantes, e sob o disfarce da impalpabilidade, banalizar a violência, a partir daí quase sempre crescente. As repercussões são evidentes e embora restritas a alguns limites que se prendem ainda à longa e tácita política de denegrir e submeter, pode impregnar qualquer manifestação referente à imagem feminina.
Mais relevante ainda, propõe obstáculos aos atentados à auto-estima da agredida, que por serem difíceis de combater, são fatores de perturbação junto à criança e ao adolescente em sua percepção da imagem feminina, como um paradigma desvalorizado ou passivo, conceitos aliás, não de todo ausentes dos primeiros textos psicanalíticos alusivos à feminilidade. Esta forma de vinculação afetiva, muito comumente redunda em aceitação de modelos de convivência familiar, assinalados por agressões, exclusão e abuso, e que se propagam direta ou indiretamente desde as culturas mais antigas à situação da mulher hoje. Que se propagam pelo viés de disfarces como as idealizações que também cerceiam, até as formas de verdadeiro extermínio em culturas que resistem a assimilação dos modelos que incluem e integram. A percepção da feminilidade pela associação com aspectos de depreciação, entretanto, diz a Psicanálise, pode encobrir os temores ante o mistério e o velado, de forma que seja mesmo “preciso” punir ante a iminência do perigo que representa. Assim, a procedência interna impregnada de profundos conteúdos inconscientes, estaria na raiz dos conflitos, tanto do externo quanto da própria mulher.
Fica então mais claro do ponto de vista da exploração dinâmica, porque as resistências frente a aplicação concreta das leis avançadas não esmorecem e a cada investida dirigida à proteção da mulher – como num paradigma da Física – mais ou menos corresponde um intento de retrocesso que propõe estagnação ou recuo. As tentativas de retirar o estupro do rol dos crimes hediondos na legislação brasileira, ainda são um bom argumento de que será preciso não se sabe até quando opor-se à violência de gênero, esteja onde estiver.
Mas o papel hierarquizado dos gêneros se estrutura também através da identificação com agressor ou agredido, com a submissão e a dominação bem definidas, de forma que a inclinação para perpetuar estes papeis distorcidos seja de prognóstico fácil. Até recentemente, os ataques perpetrados no interior da família ou mesmo dirigidos a uma outra representação feminina externa, gozavam de certo beneplácito particular e social, no sentido de que as coisa são naturalmente assim e afinal, só “um tapinha não dói…”
A própria estrutura da lei, de certa forma e por longo tempo, colocou a mulher à margem de proteção integral conquistada hoje por qualquer cidadão, desconhecendo capacidades de decisão inter e intra-família, descritos nos Códigos do Império e do início da República (na verdade, nem tão início assim…). A autoridade de um gênero sobre o outro era absoluta, o poder patriarcal inconteste e a mulher, cuidadosamente incapacitada desde a mais tenra idade para prover-se e a seus filhos, pela educação cerceadora e submissa. Época de ouro da “legítima defesa da honra”, também contemplada naqueles Códigos. A recorrente invocação deste argumento jurídico sepultou , literalmente, a emancipação de inúmeras cidadãs brasileiras.
Antes pois que fosse denunciado um agressor, como se propõe lícita e naturalmente na atualidade, eis que o Estado assumia o papel de guardião onipresente, dos limites e dos contratos sociais-familiares, cumplicitando a violência explícita contra um gênero, condição impensável no pós Constituição de 88, ao menos na redação formal da Lei.
Além disso, a tradição cultural, reprodutora destas anacrônicas tendências, se encarregou de minimizar o conflito, valeu-se sempre do costume para consolidar uma realidade que mais branda ou mais ácida, ficava sedimentada pelo humor e pela chacota, às vezes com inteligência e alguma “maquiagem” bem produzida. É o caso da loura-burra, sucesso nacional de um ataque preconceituoso à margem da ação legal, dentre tantos outros que reproduzimos sem crítica.
Com o advento da Lei 11.340, até os rappers vão ter que distribuir melhor suas “inspirações” discriminatórias. E como eles, paulatinamente, a evolução pode se propagar em ondas, envolvendo especialmente as manifestações artísticas populares, sinalizadoras da cultura e também suas representantes. Isto, em direção a expressões mais sintônicas com os tempos de conquistas, bafejados afinal pelo pensamento evoluído da modernidade e fruto das intensas revoluções empreendidas pelas mulheres em nome neste caso, dos básicos Direitos Humanos. Isto é, um movimento que tenha origem autenticamente na base, como verdadeira mudança, antes de ser impulsionado pela diretriz da lei.
De qualquer modo, mesmo não havendo crime, mas tomando conhecimento a autoridade policial da prática de violência doméstica, deverá tomar as providências determinadas na lei (art. 11): garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deverá a polícia proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e remeter a juízo expediente quando a vítima solicitar alguma medida protetiva (art. 12).
Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da delegacia de polícia tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.
Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática delitiva e não inibe a concessão das medidas protetivas tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz.
Apesar destas profundas mudanças, passado quase dois anos de vigência da lei, infelizmente há que se reconhecer que os avanços foram pequenos, até porque a aplicação da lei, em face de sua natureza, exige a criação dos Juizados da Violência e Especial contra a Mulher, recém nascendo. Só um juiz especializado pode atentar à dúplice natureza da violência doméstica, a exigir providências muito mais no âmbito do direito das famílias.
Assim, se a atribuição da competência às Varas Criminais buscou marcar o repúdio à forma de como a violência doméstica vinha sendo tratada no âmbito dos Juizados Especiais, a delegação das demandas às varas criminais não lhes concedeu melhor tratamento.
Como marcos temporais, aniversários servem para se fazer balanço do que foi feito e planejar o que fazer, este é o melhor momento para se atentar que de nada adiantou a criação da lei, que só conseguirá ser implantada quando da criação dos juizados especializados se tiver mostrado aparelhada para fazer frente ao conflito.
O simbolismo da origem da Lei se instala agora como preponderante na questão do estímulo ao exercício do direito de se opor, reivindicar, denunciar, investidas contra a segurança, à dignidade e à inclusão, já que rechaçada aqui a condição de vítima impotente. E é o objeto da violência doméstica que assume, agora como sujeito, o intento de mudar tristes realidades.
Dentre tantas formas de violência surda cá entre nós, brasileiros, uma desponta com destaque por ser justa e tradicionalmente atribuição feminina, a partir do próprio lar, a educação diferenciada, tanto a que sufoca quanto a que desfaz das diferenças inter-gêneros e de novo incursionando pela caricatura de ciência ou de lei, postula que“haja apenas um gênero e em seu nome o poder será exercido”. Pode ser concebida alguma forma de violência mais solerte, mais eficiente, do que esta? Estará também esta entre as de “menor potencial ofensivo”?
Esta será talvez a parte mais árdua da relação violência-causas: as implicações da vítima. Se houver dinamicamente uma causa suficientemente importante para que determine, aliada a múltiplos outro conflitos externos, a universalidade deste tipo de violência, que recursos implantar para promover as aspiradas mudança?
Psicólogos, com a palavra !
Neste caso e por tudo mais, de pálida eficácia seria para o crescimento equiparativo da mulher, em xeque como agente desta e de outras tantas transformações que precipitará em seu meio e em seu tempo, se – retornando ainda às primeiras questões da Psicanálise – o sentido da mudança não emergisse de suas necessidades mais autênticas, de seus modelos femininos mais particularizados. Muito antes um apossar-se de condições favoráveis do que um desfrutar das concessões da passividade e da inércia, como tão bravamente esta e outras Marias da Penha vem revelando.
Grande começo este, quando cabendo-lhe reverter condições a si adversas, pode construir através do combate tenaz aos maus-tratos, ao abuso e à discriminação, o paradigma de identificação para filhas mais saudáveis em sua feminilidade livre de agressões.
Que esta seja a grande meta até os próximos aniversários.
Só assim teremos o que comemorar!
Publicado em 27/04/2008.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
[2] Psicóloga
Vice-Presidente do JUSMULHER-RGS