Maria Berenice Dias[1]
Acaba de ser sancionada a Lei 13.010/2014, que se originou de uma iniciativa do Presidente da República, e que visa coibir a violência por parte de quem, tem o dever legal de proteger, cuidar e educar, e se prevalece da desproporcionalidade da força física, do medo, do respeito e até do afeto que, de um modo geral, crianças e adolescentes nutrem pelas pessoas que os tens em sua companhia e guarda.
O projeto inicialmente foi chamado de Lei da Palmada, nome que se justifica pelo quanto apanhou na Câmara Federal, em face da enorme resistência à sua aprovação.
Depois do lamentável infortúnio ocorrido com Bernardo Boldrini é que o PLC 58/2014 logrou aprovação, agora sob o nome de Lei Menino Bernardo, com a finalidade de lembrar a triste história de quem, aos 11 anos, órfão de mãe, rejeitado pela madrasta e negligenciado pelo pai, foi pessoalmente buscar ajuda no Forum da Comarca de Três Passos-RS, mas em 4 de abril de 2014, acabou sendo morto pela madrasta.
A Lei que desdobrou alguns artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente[2] e acrescentou um parágrafo à Lei de Diretrizes e Bases,[3] assegura a crianças e adolescentes o direito de serem criados e educados sem o uso de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante. É definido como castigo físico o uso da força física que resulta em sofrimento ou lesão física, mesmo que disponha de natureza disciplinar ou corretiva. Tratamento cruel ou degradante é considerada a conduta que humilha, a ameaça grave ou a postura que ridicularize.
Estão sujeitos à sanção legal qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar e proteger crianças e adolescentes: pais ou responsáveis, integrantes da família ampliada e agentes públicos executores de medidas socioeducativas. Aos infratores está prevista a imposição de cinco medidas, que vão desde o encaminhamento dos responsáveis a programa de proteção à família, a imposição de tratamento psicológico ou psiquiátrico, até a mera advertência. Também pode ser imposta a obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado.
Não houve a criminalização de pais ou responsáveis que agride sob qualquer pretexto: correção, disciplina ou educação. Foi vetada a única apenação pecuniária que constava do projeto, e que consistia na aplicação de multa, no valor de três a 20 salários mínimos, aos profissionais da saúde, da assistência social, da educação ou a qualquer pessoa que exerça cargo, emprego ou função pública, que deixasse de comunicar ao Conselho Tutelar a suspeita ou confirmação da ocorrência de atos de violência contra menores ou adolescentes.[4]
De forma surpreendente é atribuído ao Conselho Tutelar a imposição das medidas previstas na Lei, apesar de todos saberem que a forma eletiva de escolha dos conselheiros tutelares, sem a exigência de qualquer qualificação, tem comprometido, em muito, as atividades que deveriam desenvolver.
Ao depois, as medidas aplicadas pelos conselheiros tutelares certamente serão questionadas judicialmente, por ausência de um procedimento sujeito ao contraditório.
As demais regras trazidas pela Lei se limitam a determinar a adoções de políticas públicas, como campanhas educativas, capacitação profissional etc. Proposições que, sem imposição coercitiva, acabam virando letra morta, pois certamente não irão despertar o interesse do poder público, que nunca existiu quando se tratam de questões familiares, sendo consideradas de âmbito privado.
De qualquer modo a Lei tem o mérito de acabar com a absurda permissão que o Código Civil outorgava aos pais de castigar os filhos, ao menos moderadamente. Isto porque só o castigo imoderado ensejava a perda do poder familiar (CC, art. 1.638, inc. I). Ou seja, o castigo moderado era admitido. Agora não mais. Quem impinge castigo físico ou tratamento cruel ou degradante fica sujeito a cumprir medidas de caráter psicossociais.
Além disso, a ação do genitor em confronto com a lei configura falta aos deveres inerentes ao poder familiar, podendo o juiz adotar as medidas previstas na lei (CC, art. 1.637).
Mas talvez o ponto mais nefrálgico da nova Lei seja não ter contemplado a violência psicológica, a negligência, a agressão emocional, que causam danos muito maiores do que a própria violência física. Afinal, são agressões que afetam a alma e deixam cicatrizes invisíveis aos olhos, mas que comprometem o desenvolvimento sadio e a formação psíquica das vítimas.
Exatamente a violência sofrida por Bernardo Boldrini por parte de seu pai e de sua madastra. Desta violência do qual ele era vítima, todos sabiam: avó materna, professores, vizinhos, amigos e colegas. Mas nunca ninguém se sentiu na obrigação de buscar alguma providência, fazer qualquer tipo de denúncia.
O pedido de socorro foi feito pelo próprio Bernardo que relatou a violência psicológica da qual era vítima ao juiz, à promotora, à psicóloga e à assistente social. Ainda assim, a mera promessa do genitor de que daria mais atenção ao filho foi suficiente para o procedimento ser suspenso por 90 dias, sem que tivesse sido determinado qualquer tipo de apoio a ele ou o acompanhamento dos seus familiares.
Assim, a Lei também não pode ser chamada de Lei Menino Bernardo.
Publicada em 28/06/2014.
[1] Advogada
Vice-Presidenta do IBDFAM
[2] Acrescentou os arts. 18-A, 18-B e 50-A e deu nova redação ao art. 13 à Lei 8.069/1990.
[3] Acrescentou o § 8º ao art. 26 da Lei 9.394/1996.
[4] Foi vetada nova redação ao art. 275 do ECA.