União estável – Presunção de esforço comum na aquisição de patrimônio no período de 1988 e 1996.

Maria Berenice Dias

Advogada

Vice Presidente Nacional do IBDFAM

 

 

AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2194667 – ES (2022/0256842-4) RELATOR : MINISTRO RAUL ARAÚJO

EMENTA

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. ESFORÇO COMUM. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

  1. “A presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes foi introduzida pela Lei 9.278/96, devendo os bens amealhados no período anterior à sua vigência, portanto, ser divididos proporcionalmente ao esforço comprovado, direito ou indireto, de cada convivente, conforme disciplinado pelo ordenamento jurídico vigente quando da respectiva aquisição (Súmula 380/STF)” (REsp 1.124.859/MG, Rel. p/ acórdão Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/11/2014, DJe de 27/2/2015).
  2. Agravo interno desprovido.

 

VOTO

 

O EXMO. SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO (Relator):

 

A irresignação não merece acolhida.

A Corte de origem afirmou que, comprovada a existência de união estável sob regime de comunhão parcial de bens, é dispensável a apuração de incremento patrimonial e participação pormenorizada de cada convivente, devendo ser reconhecido o direito à meação, cuja concorrência de ambos é presumida, in verbis:

Na hipótese dos autos, verifica-se, de fato, que o casal mantivera relacionamento estável, público e continuo, com objetivo de constituição de família, conforme se verifica nas imagens de fls. fls. 102/117, 342/357 e 885/887, que compreende o registro de diversos momentos do casal em família, inclusive, quando do nascimento de sua filha em comum, com registros, também, após decorridos alguns anos do nascimento da criança.

Ademais, os depoimentos das partes às fls. 887/889-verso, bem como das testemunhas às fls. 890/896, também demonstram a existência de União Estável das partes, in verbis:

(…)

Assim, consoante o exposto, restou devidamente comprovado que o casal mantivera uma união estável, pública e continua, com objetivo de constituição de família.

(…)

Neste ponto, cumpre ressaltar que uma vez reconhecida a União Estável entre o Recorrente e a Recorrida, não há falar-se em necessidade de prova do esforço comum da Recorrida na aquisição dos bens em nome do Recorrente durante este período. Isso porque, afigura-se cediço na jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça que “na união estável, vigente o regime da comunhão parcial, há presunção absoluta de que são resultado do esforço comum dos conviventes” (STJ – REsp 1485014/MA,  Rel.  Ministro  MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA,

julgado em 25/04/2017, DJe 15/05/2017) Nesse sentido, também perfilha o entendimento deste Egrégio Tribunal de Justiça, in verbis:

(…)

Dessa forma, impõe-se a manutenção da Sentença proferida pelo Juizo de Primeiro Grau, que reconhece a existência de União Estável entre R P DE O e R DE A C e partilha os bens adquiridos pelas partes na constância dessa União, diante da presunção absoluta de que tais bens são resultado do esforço comum dos conviventes.

 

Com efeito, a decisão de origem está em conformidade com o entendimento desta Corte Superior, de modo a incidir a Súmula 83/STJ.

Além dos precedentes já citados na decisão monocrática anteriormente proferida, confira-se, ainda, o seguinte escólio:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL MANEJADO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. FAMÍLIA. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. OFENSA A ARTIGO CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO STF. ALEGAÇÃO GENÉRICA DE AFRONTA À CF. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INCIDÊNCIA, POR ANALOGIA, DA SÚMULA Nº 284 DO STF. COMPROVAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL CONTÍNUA E DURADOURA. CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO COM BASE NOS ELEMENTOS E PROVAS DOS AUTOS. REVISÃO NA VIA DO RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVAS. VEDAÇÃO. SÚMULA Nº

7 DO STJ. ALEGAÇÃO GENÉRICA DE OFENSA A LEI FEDERAL. AUSÊNCIA DE ESPECIFICAÇÃO DO DISPOSITIVO LEGAL OFENDIDO. DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO. INCIDÊNCIA, POR ANALOGIA, DA SÚMULA Nº 284 DO STF. ANULAÇÃO DE REGISTRO PÚBLICO DE ESCRITURA COM BASE EM OCORRÊNCIA DE SIMULAÇÃO. AÇÃO AUTÔNOMA. ART. 1.245 DO CC/02. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO DA FAMÍLIA. APÓS A EDIÇÃO DA LEI Nº 9.278/1996, NA UNIÃO ESTÁVEL, VIGENTE O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL, HÁ PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE QUE OS BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO SÃO RESULTADO DO ESFORÇO COMUM DOS CONVIVENTES. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

  1. As disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de admissibilidade dos recursos, são inaplicáveis ao caso concreto ante os termos do Enunciado Administrativo nº 2 aprovado pelo Plenário do STJ na Sessão de 9.3.2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
  2. Não compete ao STJ o exame de violação a dispositivo da Constituição Federal, sob pena de usurpação da competência do STF. Precedentes.
  3. A conclusão da instância ordinária, formada com suporte nos elementos fáticos e probatórios dos autos de que se configurou a união estável pública, contínua e duradoura dos litigantes, não pode ser revista em recurso especial em razão do óbice contido na Súmula nº 7 do STJ.
  1. A alegação de ofensa genérica à Lei Federal, sem indicação do dispositivo legal violado pelo acórdão recorrido, caracteriza deficiência da fundamentação e faz incidir, por analogia, a Súmula nº 284 do STF.
  2. Não obstante o Juízo de Família seja competente para reconhecer e dissolver a união estável, bem como para determinar a partilha dos bens adquiridos na constância da convivência, eventual nulificação de registro de escritura pública de transferência de propriedade a terceiro que não participou da lide familiar, ainda que com base em simulação, deve ser realizada em ação autônoma, a teor do art. 1.245 do CC/02, em decorrência do princípio da fé pública. Precedentes.
  3. Recurso especial parcialmente provido.

(REsp 1.485.014/MA, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA

TURMA, julgado em 25/04/2017, DJe 15/05/2017)

 

Com o desiderato de afastar qualquer dúvida, cita-se trecho da sentença em que se reconheceu o período da união estável entre os cônjuges, verbis:

“Logo, imperioso se mostra o reconhecimento da união estável alegada na exordial, no período compreendido entre dezembro de 1998 ATÉ fevereiro de 2003.

 

Assim, os valores despendidos após a vigência da Lei 9.278/96, caso dos autos, deverão ser partilhados igualmente, em virtude da presunção do esforço comum, previsto no art. 5º da referida lei, consoante se verifica no julgado a seguir ementado:

“RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL. INÍCIO ANTERIOR E DISSOLUÇÃO POSTERIOR À EDIÇÃO DA LEI 9.278/96. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE ANTES DE SUA VIGÊNCIA.

  1. Não ofende o art. 535 do CPC a decisão que examina, de forma fundamentada, todas as questões submetidas à apreciação judicial.
  2. A ofensa aos princípios do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada encontra vedação em dispositivo constitucional (art. 5º XXXVI), mas seus conceitos são estabelecidos em lei ordinária (LINDB, art. 6º). Dessa forma, não havendo na Lei 9.278/96 comando que determine a sua retroatividade, mas decisão judicial acerca da aplicação da lei nova a determinada relação jurídica existente quando de sua entrada em vigor – hipótese dos autos – a questão será infraconstitucional, passível de exame mediante recurso especial. Precedentes do STF e deste Tribunal
  3. A presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes foi introduzida pela Lei 9.278/96, devendo os bens amealhados no período anterior à sua vigência, portanto, ser divididos proporcionalmente ao esforço comprovado, direito ou indireto, de cada convivente, conforme disciplinado pelo ordenamento jurídico vigente quando da respectiva aquisição (Súmula 380/STF).
  4. Os bens adquiridos anteriormente à Lei 9.278/96 têm a propriedade – e, consequentemente, a partilha ao cabo da união – disciplinada pelo ordenamento jurídico vigente quando respectiva aquisição, que ocorre no momento em que se aperfeiçoam os requisitos legais para tanto e, por

conseguinte, sua titularidade não pode ser alterada por lei posterior em prejuízo ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5, XXXVI e Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º).

  1. Os princípios legais que regem a sucessão e a partilha de bens não se confundem: a sucessão é disciplinada pela lei em vigor na data do óbito; a partilha de bens, ao contrário, seja em razão do término, em vida, do relacionamento, seja em decorrência do óbito do companheiro ou cônjuge, deve observar o regime de bens e o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar.
  2. A aplicação da lei vigente ao término do relacionamento a todo o período de união implicaria expropriação do patrimônio adquirido segundo a disciplina da lei anterior, em manifesta ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito.
  3. Recurso especial parcialmente provido.”

(REsp 1124859/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ acórdão Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO,

julgado em 26/11/2014, DJe 27/02/2015)

 

Por ocasião do julgamento citado acima, prevaleceu, na Segunda Seção do STJ, o entendimento de que a presunção legal do esforço comum e, portanto, o direito à meação, limita-se aos bens adquiridos onerosamente após a vigência da Lei 9.278/96. Quanto ao período anterior, a partilha deverá ser orientada pelo critério do esforço comum, direto e indireto.

Diante do exposto, nego provimento ao agravo interno. É como voto.

 

Parece mero exercício de retórica falar em situação jurídica referente a período de tempo tão remoto: entre 1988 e 1996. Só que não. A morosidade da justiça faz com que temas antigos ainda sejam recorrentes. Um exemplo diz com o regime de bens da união estável, reconhecida constitucionalmente e regulamentada somente seis anos depois.

E, entre idas e vindas, a jurisprudência acabou por sedimentar entendimento que em muito se afasta dos os avanços que vem atentando mais à realidade vivenciada no âmbito das relações familiares.  O casamento eixou o de ser visto como uma instituição sacralizada a ser mantido a qualquer preço, sem atentar a estrutura machista e conservadora que relegava a mulher a uma condição de subserviência e não atribuída valor econômico às atividades domésticas que lhe eram impostas.

As mudanças ocorridas da sociedade, que impuseram uma releitura do papel feminino, precisa alcançar as situações pretéritas, em que a divisão de papéis invisibilizava as mulheres.

A Constituição da República de 1988, ao reconhecer a família como base da sociedade outorgando-lhe a especial proteção do Estado, trouxe o conceito de entidade familiar,  albergando assim outras estruturas de convívio para além do casamento.

As uniões extramatrimoniais – até então nominadas pejorativamente de concubinato, alijadas pela sociedade e punidas pela lei – receberam o nome de união estável (CR, art. 226, § 3º). Limitava-se a jurisprudência a reconhecê-las como meras sociedades de fato, fora do âmbito de proteção do Direito das Famílias. Tanto que as demandas tramitavam nos juízes cíveis. Como sociedades irregulares, no máximo era admitida a divisão dos bens amealhados durante sua vigência.

O alargamento do conceito de família dispensa qualquer regulamentação para produzir efeitos. Assegurou um direito fundamental a ditas estruturas de convívios via dispositivo autoaplicável. Explícito o comando  constitucional (CR, art. 5º, § 1º): As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Diante do novo arcabouço jurídico, a ausência de uma legislação infraconstitucional regulamentando a união estável, não impediu – e nem poderia – seu imediato reconhecimento. A jurisprudência, por analogia,  passou a aplicar as regras do casamento. As ações migraram do juízo cível para as Varas de Famílias e aos companheiros foram concedidos os mesmos direitos. Tanto que, já no ano de 1990, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, decisão da qual fui Relatora, deferiu alimentos à companheira.[1]

As normas regulamentadoras da união estável, foram editadas somente nos anos de 1994 e 1996, e nada mais fizeram do que ratificar o comando constitucional. Em um primeiro momento foi assegurado direito à alimentos, usufruto e direito sucessório, bem como o direito à meação dos bens da herança adquiridos com a colaboração do companheiro (Lei 8.971/1994).

Depois, foram introduzidos os elementos identificadores da união estável: publicidade, continuidade, notoriedade com a intenção de constituição de uma família. Definida a competência da Vara de Família, foram assegurados direitos e deveres recíprocos. Em caso de falecimento, além do direito real de habitação foi garantido direito à herança. Também acabou consagrada a presunção de cotitularidade igualitária do patrimônio adquirido onerosamente na constância da união, sendo considerados fruto do trabalho e colaboração comum (Lei 9.278/1996).

Posteriormente o Código Civil absorveu os dispositivos das leis especiais no Livro do Direito de Família (arts. 1.723 a 1.727).

A inútil recomendação constitucional de que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento não estabeleceu qualquer hierarquização entre as duas estruturas familiares, mas induziu o legislador a emprestar-lhes tratamento diferenciado. Equívoco que, em boa hora, foi espancado pelo Supremo Tribunal Federal, ao declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, que emprestava menos direitos ao companheiro no âmbito do direito sucessório. O fundamento da decisão foi exatamente o desrespeito ao princípio da igualdade, conforme o voto do Min. Luís Roberto Barroso:

Se o papel de qualquer entidade familiar constitucionalmente protegida é contribuir para o desenvolvimento da dignidade e da personalidade dos indivíduos, será arbitraria toda diferenciação de regime jurídico que busque inferiorizar um tipo de família em relação a outro, diminuindo o nível de proteção estatal aos indivíduos somente pelo fato de não estarem casados. Desse modo, a diferenciação de regimes entre casamento e união estável somente será legitima quando não promover a hierarquização de uma entidade familiar em relação a outra.[2]

 

De qualquer modo, ao menos no que diz com o regime de bens as regras sempre foram iguais. Sem prévia estipulação sobre questões patrimoniais – via pacto antenupcial (CC, art. 1.640) ou contrato de convivência (CC, art. 1.725) – o  regime é o da comunhão parcial. Presume-se que todos os bens amealhados no período de convivência foram adquiridos por mútua colaboração, sendo considerados frutos do esforço comum.

No casamento, dita comunicabilidade é explícita no Código Civil (art. 1.658): No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento.

Na união estável, a presunção juris et de jure de que os bens adquiridos a título oneroso na constância da convivência são fruto do esforço comum, foi instituída pelo art. 5º da Lei 9.278/1996: Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.

No entanto, com relação às uniões que se constituíram antes da entrada em vigor deste dispositivo legal, especificamente, antes de 10 de maio de 1996, surgiram questionamentos sobre a necessidade ou não de ser comprovada a efetiva participação de cada parceiro para a partilha igualitária dos bens.

A controvérsia deve ser equacionada de maneira a melhor atender ao propósito da Constituição, de modo a assegurar sua máxima efetividade e plena eficácia. Assim, a partir de outubro de 1988, com o esgarçamento do conceito de família, não é possível subtrair efeitos patrimoniais da união estável. A omissão do legislador infraconstitucional de regulamentá-la, não pode levar a justiça a exigir prova da efetiva contribuição de cada um na aquisição do patrimônio amealhado durante o período de convivência, sob pena de se negar eficácia ao comando constitucional.

Nada justifica pretender que, a partir da constitucionalização da união estável, se possa exigir prova da efetiva contribuição de cada um na aquisição do patrimônio amealhado durante o período de convivência.

Primeiro. Súmula do Supremo Tribunal Federal,[3] editada no ano de 1964, quando somente era reconhecida a existência de uma sociedade de fato, já determinava a partilha igualitária dos bens, sem a exigência da prova do esforço comum.  Ao depois, a legislação que veio regular a união estável, nada mais fez do replicar o regime patrimonial que já era reconhecido mesmo quando tais vínculos eram chamados de sociedade de fato.

Finalmente. Merece o tema uma abordagem atentando à realidade histórica, que diz com a desequiparação dos papéis de gênero, que a sociedade impôs  a homens e mulheres, A naturalização de atribuir a titularidade do patrimônio ao marido ou companheiro, decorria do fato de não se reconhecer relevância econômica ao trabalho desempenhado pela mulher com os filhos e a casa.

Só recentemente a chamada “economia do cuidado” passou a merecer a devida atenção, com o reconhecimento   de que a participação da mulher no contexto das atividades domésticas dispõe de valor econômico e precisa ser mensurado.[4]

A consciência desta realidade  inspirou a correta interpretação frente a lacuna legal. Data do ano de 2013 a decisão da Ministra Nancy Andrighi que reconheceu a desnecessidade da prova do esforço comum, mesmo antes da edição da Lei 9.278/1996:

(…) Conquanto o art. 5º da Lei 9.278/96 incida do momento de sua vigência em diante, não se pode negar que o seu espírito nasceu impregnado do senso de justiça e solidariedade que impõe, na interpretação do § 3º do art. 226 da CF, mesmo antes da correspondente regulamentação, o reconhecimento de que, como entidade familiar que é, a união estável pressupõe a intenção dos seus membros de comungar esforços para o alcance de objetivos que lhes são comuns, sejam eles patrimoniais ou extrapatrimoniais. 5. Essa comunhão de esforços não se restringe à mera contribuição financeira, porque, na divisão de tarefas do cotidiano familiar, outras atividades existem, de igual importância e necessidade para a harmonia do convívio de todos os integrantes e a construção do almejado patrimônio. 6. A tese de que até o advento da Lei 9.278/96 se exige a comprovação do esforço comum, para que tenha o companheiro direito à metade dos bens onerosamente adquiridos na constância da união estável, é construção jurisprudencial que não se coaduna com a natureza própria de entidade familiar, conferida, muito antes, pela Constituição Federal, sob cujos influxos axiológicos deve ser interpretado todo o Direito infraconstitucional. 7. Assim, o preenchimento do vácuo legislativo decorrente da ausência de regulamentação legal do § 3º do art. 226 da Constituição Federal impõe ao Juiz o dever de decidir no sentido que confira máxima efetividade ao dispositivo constitucional que reconhece a união estável como entidade familiar. Para tanto, observando aquilo que ordinariamente acontece – que a formação da família pressupõe o empenho mútuo, no plano material e/ou imaterial, necessário à realização plena de seus integrantes -, a solução da controvérsia outra não deve ser senão a de reconhecer, salvo as exceções legais ou se pactuado diversamente pelos companheiros, o emprego do esforço comum para a aquisição onerosa de bens no curso da vida a dois.8. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.[5]

 

Quando a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça acabou firmando entendimento acerca do tema em sentido contrário, o voto vencido o Ministro Luis Felipe Salomão relembra os fundamentos levantados pela colegaNancy Andrighi:

Dessarte, embora seja certo que, anteriormente às Leis n. 8.971/1994 e 9.278/1996, não havia legislação dispondo a respeito dos bens adquiridos durante o concubinato (união estável), existia, inequivocamente, o reconhecimento de que desta relação exsurgia direitos de natureza patrimonial e que estes deveriam ser reconhecidos. […] mesmo antes da correspondente regulamentação, o reconhecimento de que, como entidade familiar que é, a união estável pressupõe a intenção dos seus membros de comungar esforços para o alcance de objetivos que lhes são comuns, sejam eles patrimoniais ou extrapatrimoniais. 5. Essa comunhão de esforços não se restringe à mera contribuição financeira, porque, na divisão de tarefas do cotidiano familiar, outras atividades existem, de igual importância e necessidade para a harmonia do convívio de todos os integrantes e a construção do almejado patrimônio. 6. A tese de que até o advento da Lei 9.278/96 se exige a comprovação do esforço comum, para que tenha o companheiro direito à metade dos bens onerosamente adquiridos na constância da união estável, é construção jurisprudencial que não se coaduna com a natureza própria de entidade familiar, conferida, muito antes, pela Constituição Federal, sob cujos influxos axiológicos deve ser interpretado todo o Direito infraconstitucional. […] a formação da família pressupõe o empenho mútuo, no plano material e/ou imaterial, necessário à realização plena de seus integrantes -, a solução da controvérsia outra não deve ser senão a de reconhecer, salvo as exceções legais ou se pactuado diversamente pelos companheiros, o emprego do esforço comum para a aquisição onerosa de bens no curso da vida a dois.[6]

 

A necessidade de se atentar a esta realidade, inclusiva, é imposta pelo Conselho Nacional de Justiça ao tornar obrigatória a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.[7]

Ou seja, não há como se falar em ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito para impedir a partição do patrimônio   a partir da vigência da regra constitucional e antes da regulamentação da união estável levada a efeito seis anos depois. Afinal, os bens foram amealhados por ambos.

Absolutamente desarrazoado insistir na subtração de efeitos patrimoniais à união estável, mantendo ao desabrigo jurídico uma entidade familiar consagrada constitucionalmente. É, nada menos, do que condenar à invisibilidade quem sempre foi alvo da rejeição social. É chancelar verdadeiro retrocesso.

Assim, independentemente da data de início da união estável, é indispensável reconhecer que vigora entre os companheiros o regime da comunhão parcial de bens, presumindo-se o esforço comum para a divisão igualitária do patrimônio.

 

 

 

[1] TJRS – AC 590069308, 8ª C. Cív., Rel. Maria Berenice Dias, j. 20/12/1990.

[2] STF – RE 878694, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 10-05-2017.

 

[3] STF – Súmula 380: Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.

[4] (…) O esforço comum não se limita a contribuição material, abrangendo também o apoio moral em todo o relacionamento, diante da solidariedade que sempre deve nortear a relação. (…) (TJPR – AC 6332185 PR 0633218-5, 11ª T., Rel. Vilma Régia Ramos de Rezende, j. 14/07/2010).

[5] STJ – REsp 1337821/MG,3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi,  j. 21/11/2013.

[6] STJ – REsp 1124859/MG, 2ª Seção,  Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Ac. Min. Isabel Gallotti,  j. 21/11/2013.

[7] CNJ – Recomendação 128/2022 e Resolução 492/2023.

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