Maria Berenice Dias[1]

Vanessa Viafore Menezes[2]

[1] Advogada, Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

[2] Advogada, membro do IBDFAM

 

 

Entre os direitos e garantias fundamentais, a Constituição da República assegura a imutabilidade da coisa julgada (CR, art. 5º, XXXVI). Na clássica definição de Liebman, trata-se de uma qualidade que torna imutável o comando emergente da sentença, tanto no seu conteúdo como nos seus efeitos.[1]

A possibilidade de flexibilização deste princípio norteador da segurança das relações jurídicas, surgiu no âmbito do direito contratual. A necessidade de garantir o cumprimento do contrato é expressa na cláusula pacta sunt servanda.[2] No entanto, como podem ocorrer circunstâncias que mudem a situação originária, em comparação ao momento em que foi feito o acerto contratual – teoria da imprevisão – há a necessidade de proteger os contratantes. Surge assim a máxima rebus sic stantibus.[3] Ou seja, a inalterabilidade do pactuado permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos do negócio.

Estas mesmas possibilidades de mudança de situação de fato ou de direito ocorrem nas relações jurídicas de trato sucessivo, o que levou o legislador a relativizar o verdadeiro dogma da imutabilidade da coisa julgada. Medida excepcional, frente a situações que o direito envolvido se sobrepõe à exigência de estabilidade das decisões judiciais.

Deste modo, situações passíveis de alteração fatual devem ser consideradas, durante a tramitação da ação ou até após a prolação da sentença. A necessidade de adequações tem previsão legal. É lícito às partes, em qualquer tempo, juntar documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos em momento posterior (CPC, art. 435). Do mesmo modo, de ofício ou a requerimento da parte, o juiz deve levar em consideração, fatos constitutivo, modificativos ou extintivos do direito, que influem no julgamento do mérito (CPC, art. 493). E, mesmo depois da sentença, sobrevindo modificação no estado de fato ou de direito, a parte pode pedir a revisão do que foi decidido (CPC, art. 505, I).

Ou seja, nas relações jurídicas continuativas, a força vinculante da decisão judicial tem implícita a cláusula rebus sic stantibus[4]:

Neste sentido, posiciona-se a doutrina, que didaticamente esclarece:

a força da coisa julgada tem uma condição implícita, a da ‘clausula rebus sic stantibus’, a significar que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da prolação da sentença. Alterada a situação de fato (muda o suporte fático mantendo-se o estado da norma) ou de direito (muda o estado da norma, mantendo-se o estado de fato), ou dos dois, a sentença deixa de ter a força de lei entre as partes que até então mantinha [5].

 

Esta é a orientação acolhida pelo Supremo Tribunal Federal.[6] E encontra eco em decisões de situações outras.[7]

O maior exemplo desta possibilidade revisional diz com o encargo de alimentos, relação jurídica de trato sucessivo, que se condiciona à ação do tempo. E, ainda que fixados judicialmente, se sujeitam a alterações sempre que haja modificações ou das possibilidades dos alimentantes ou das necessidades dos alimentandos. Expressa é a previsão legal (CC, art. 1.699): fixados os alimentos, se sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, o interessado pode reclamar a exoneração, redução ou majoração do encargo.

Dita mutabilidade levou a Lei de Alimentos a dizer que a decisão sobre alimentos não transita em julgado e pode a qualquer tempo ser revista, em face da modificação da situação financeira dos interessados (Lei 5.478/1958, art. 15).

A possibilidade revisional leva à falsa ideia de que a sentença que fixa alimentos não se sujeita à imutabilidade. Esta assertiva não é verdadeira. De há muito é fortemente contestada pela doutrina.

A sentença proferida em ação de alimentos produz, sim, coisa julgada material. Equivocada a expressão legal, ao afirmar que a decisão sobre alimentos não transita em julgado, porque pode ser revista a qualquer tempo. A ação revisional é outra ação. Ainda que as partes e o objeto sejam os mesmos, é diferente a causa de pedir.[8]

Estabelecida a obrigação alimentar, que envolve inclusive o estado familiar das partes, a sentença transitada em julgado, atinge a condição de coisa julgada material, não podendo novamente essa questão ser reexaminada.[9]

O que autoriza a revisão é a ocorrência de fato novo ensejador de desequilíbrio. Não havendo alteração de qualquer dos vértices do binômio possibilidade-necessidade, a pretensão revisional esbarra na coisa julgada.

Esta posição é sufragada pela jurisprudência.[10]

Mas há situações outras que se perenizam no tempo. E, diante da possibilidade de ocorrerem alterações, se sujeitam à possibilidade revisional. Os vínculos familiares, por terem origem em relações de natureza afetiva, não são eternos. Sujeitam-se a mutações ao longo do tempo. E os laços e desenlaços provocam mudanças significativas, que não podem se perpetuar pelo simples fato de terem merecido a chancela judicial.

Outras situações jurídicas são modelos de relações de trato continuado, principalmente as que envolvem o vínculo de parentalidade, que se define pela presença do elo de afetividade. Em face do comando constitucional que assegura prioridade absoluta um punhado de direitos a crianças e adolescentes (CR, art. 227), o Estatuto da Criança e do Adolescente salvaguarda o princípio do melhor interesse (ECA, art. 100, II e IV).

Os exemplos são inúmeros: reconhecimento judicial da filiação socioafetiva, adoção, multiparentalidade etc. Todas situações sujeitas a vicissitudes que autorizam a constituição ou a desconstituição das relações paterno-filiais. Induvidoso que a garantia de estabilização do julgado não pode ter guarida quando as condições estabelecidas na sentença deixam de se alinhar à realidade. O caso concreto é que determina a extensão da revisão do julgado.

Até mesmo a destituição do poder familiar, se sujeita à reversão, acaso a situação que foi fotografada na decisão transitada em julgado não mais se justifique.[11]

É o que afirmam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald: […] não se pode canonizar o instituto da coisa julgada, de modo a afrontar a própria sociedade e o ser humano. Há que se ponderar pela proporcionalidade dos interesses que deve prevalecer.  Esse novo sistema de regramento da coisa julgada independe de expressa previsão legal, podendo ser aplicado aos casos concretos, a partir das concepções e princípios constitucionais, visando promover a dignidade da pessoa humana e a isonomia substancial, determinadas pela Lei Maior[12].

Em outras palavras, a coisa julgada, formal e material, que eventualmente se tenha produzido, fica preservada desde que as condições objetivas permaneçam as mesmas (cláusula rebus sic stantibus). Modificadas estas, outra poderá ser a decisão, sem que haja ofensa à coisa julgada.

Quando se trata de relação que se prolonga no tempo, é  perene a possibilidade de sua adequação quando fato superveniente implique em modificação da situação cristalizada na sentença, uma vez que sobre a imutabilidade da coisa julgada paira o princípio da proporcionalidade.

Ou seja, a superveniência da alteração das circunstâncias de fato que foram objeto de análise de decisão definitiva constituem-se em marco temporal final da coisa julgada material.

 

Referências bibliográficas

FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. A coisa julgada nas ações de alimentos. Revista da Ajuris – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ajuris, n. 52, jul. 1991.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 15. ed. Salvador: Juspodivm, 2023. vol. 6, 697.

LIEBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e autoridade sentença e outros escritos sobre coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 4. ed., 2006.

PORTO, Sérgio Gilberto. Doutrina e prática dos alimentos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011.

ZAVASKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[1] LIEBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e autoridade sentença e outros escritos sobre coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 4. ed., 2006, p. 14.

[2] Em tradução livre: os contratos devem ser cumpridos.

[3] Em tradução livre: estando assim as coisas. O que significa dizer que situações ou obrigações terão validade enquanto se mantiver a situação que lhes deu origem.

[4] Em tradução livre: estando assim as coisas. O que significa dizer que situações ou obrigações terão validade enquanto se mantiver a situação que lhes deu origem.

[5] ZAVASKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, 101.

[6] […] Relação jurídica de trato continuado. Eficácia temporal. Cláusula rebus sic stantibus. Superveniente incorporação definitiva nos vencimentos por força de dissídio coletivo. Exaurimento da eficácia da sentença. 1. A força vinculativa das sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado atua rebus sic stantibus: sua eficácia permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos adotados para o juízo de certeza estabelecido pelo provimento sentencial. A superveniente alteração de qualquer desses pressupostos (a) determina a imediata cessação da eficácia executiva do julgado, independentemente de ação rescisória ou, salvo em estritas hipóteses previstas em lei, de ação revisional, razão pela qual (b) a matéria pode ser alegada como matéria de defesa em impugnação ou em embargos do executado. […] 3. Recurso extraordinário improvido. (STF –  RE 596663, Rel. Min. Teori Zavascki, T. Pleno, j. 24/09/2014.

[7] […] Por primeiro, importante anotar que não houve ofensa a coisa julgada por se tratar de necessidade atual do fornecimento de fraldas à impetrante. De forma que, tratando-se de obrigação de trato sucessivo, comprovada por documentos médicos que atestam o quadro clínico degenerativo, progressivo e irreversível de intuitiva gravidade, vulnerabilidade e necessidade atual, afasta-se a alegação de coisa julgada. […] (TJSP – A/Rem. Nec. 1057816-72.2022.8.26.0576, 5ª C. Dir. Público, Rel. Marcelo Martins Berthe, j. 08/06/2023).

[8] FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. A coisa julgada nas ações de alimentos. Revista da Ajuris – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ajuris, n. 52, jul. 1991, 28.

[9] PORTO, Sérgio Gilberto. Doutrina e prática dos alimentos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 2011.

[10] Apelação. Alimentos. Ação revisional. Coisa julgada. As ações alimentares, dentre elas a ação revisional, são aptas à formação de coisa julgada material em relação à situação fática discutida e apreciada em sentença contra a qual incabível recurso. Pedido revisional fundado no desemprego, situação fática já coberta pelo manto da coisa julgada da ação de alimentos. Sentença que julgou extinto o processo, sem exame do mérito, com fundamento no art. 845, V do CPC. Sentença mantida. Negaram provimento ao recurso. (TJSP – AC 10085248620208260286 SP 1008524 -86.2020.8.26.0286, 8ª Câm. Dir. Priv., Rel. Alexandre Coelho, j. 13/102021).

[11] Apelação cível. ECA. Ação de restituição do poder familiar. Possibilidade jurídica do pedido. Proteção integral e prioritária dos direitos da criança e do adolescente. Desconstituição da sentença extintiva. 1. A atenta e sistemática leitura dos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente permite concluir que apenas a adoção tem caráter irrevogável, porque expressamente consignado no § 1º do art. 39. Diante do silêncio da lei acerca do restabelecimento do poder familiar, também se pode concluir, a contrário senso, pela possibilidade da reversão da destituição do poder familiar, desde que seja proposta ação própria para tanto, devendo restar comprovada a modificação da situação fática que ensejou o decreto de perda do poder familiar. Desse modo, impõe-se a desconstituição da sentença que extinguiu o processo por impossibilidade jurídica do pedido. 2. À luz da doutrina da proteção integral e prioritária dos direitos da criança e do adolescente preconizada pelo ECA, a intervenção do Estado deve atender prioritariamente aos superiores interesses dos menores, nos termos do art. 100, inc. II e IV, do ECA, de modo que, caso o retorno da jovem ao convívio paterno se mostre a medida que melhor atenda aos seus interesses, não há motivos para que se obste tal retorno, com a restituição do poder familiar pelo genitor. 3. Trata-se, no caso, de uma relação jurídica continuativa, sujeita, portanto, à ação do tempo sobre seus integrantes (tal qual ocorre com as relações jurídicas que envolvem o direito a alimentos). Logo, a coisa julgada, formal e material, que antes se tenha produzido, fica preservada desde que as condições objetivas permaneçam as mesmas (cláusula rebus sic stantibus). No entanto, modificadas estas, outra poderá ser a decisão, sem que haja ofensa à coisa julgada. Sentença desconstituída, para que o feito tenha prosseguimento. Deram provimento. Unânime. (TJRS – AC 70083686238, 8ª C. Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 16/04/2022).

Apelação cível. ECA. Restituição do poder familiar. Pleito de desconstituição da sentença extintiva. Possibilidade parcial, diante do caso concreto. Sentença desconstituída parcialmente. 1. Embora a destituição do poder familiar tenha caráter permanente, a sentença refere-se à relação jurídica continuativa, logo, se sobrevier modificação no estado de fato ou de direito, poderão as partes requerer a revisão do julgado, excetuando a hipótese de adoção transitada em julgado. 2. Caso dos autos, dos quatro filhos da apelante, um deles foi adotado, outro atingiu a maioridade, restando dois dos infantes acolhidos, pelos quais a genitora poderá reivindicar a retomada do poder familiar, usando-se desta ação para tanto. Apelação parcialmente provida. (TJRS – AC 50822021820228210001, 7ª Câm. Cível (dec. monocrática), Rel. Vera Lucia Deboni, j. 24/03/2023).

[12] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 15. ed. Salvador: Juspodivm, 2023. vol. 6, 697.

 

 

 

Data do artigo: 10/07/2023

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