Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Homoparentalidade

Homoparentalidade: direito e dever de proteger

Maria Berenice Dias[1]

 

Ruiu a ideia de que a família dispunha de um único modelo: matromonilizado, verticalizado, fértil e hetererossexual. No momento em que a família deixou de ser identificada única e exclusivamente pelo casamento, foi possível visualiar sua mais importante característica: o afeto – que passou a ser reconhecido como o elemento estruturante das relações familaires.

Por isso, agora, não se fala mais em família, mas em famílias, no plural.  Todas as pessoas têm direito à constituição de uma família e são livres para escolher o modelo de entidade familiar que lhes aprouver. A capacidade procriativa, que por influência religiosa sempre serviu como marco essencial da família,  deixou de ter significado.

Entre as novas conformações sociais se encontram as famílias homoafetivas. Claro que sempre existiram, mas só agora adquiriram visibilidade e inserção no âmbito da tutela jurídica. Por obra e graça do Poder Judiciário,  foi garantido  acesso ao casamento,  independente da orientação sexual ou identidade de gênero do casal. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável homoafetiva[2] e o Superior Tribunal de Justiça, admitiu a habilitação ao casamento.[3]  O Conselho Nacional de Justiça proibe qualquer autoridades competentes a recusar a habilitação, a celebração de casamento civil ou a conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.[4]

De qualquer modo, tenha o formato que tiver – e ainda que tenha perdido a sacralidade – a família continua sendo um núcleo de proteção e cuidado. Tanto de um do par para com o outro, como de ambos para com a prole, quer sejam filhos de ambos, quer de apenas um deles.  Ou seja, o afeto passou a ser o elemento identificador não só das entidades familiares mas também dos vínculos parentais.

Concomitante e paradoxalmente, apareceu a possibilidade de descobrir a verdade genética, com significativo grau de certeza, o que atropelou a verdade jurídica, definida muitas vezes por meras presunções legais. E, no confronto entre a verdade biológica e a realidade vivencial, coube à Justiça a tarefa de definir a relação paterno-filial quando a estrutura familiar não reflete o vínculo de consanguinidade. Prestigiando o comando constitucional, que assegura com absoluta prioridade o melhor interesse de crianças e adolescentes, passaram os juízes a investigar quem a criança considera pai e quem a ama como filho.

A definição da paternidade restou condicionada à identificação da posse do estado de filho. Com isso surgir uma nova figura jurídica: a filiação socioafetiva, que acabou se sobrepondo tanto à realidade biológica como a registral.

Esta realidade se flagra também nas famílais homaofetivas. Apesar de seus integrante não disporem de capacidade reprodutiva, ainda assim têm filhos.

Mais uma vez coube à justiça reconhecer a homoparentalidade. Dentre vários direitos passou a assegurar direito ao exercício da parentalidade, acesso às técnicas de reprodução assistida,  uso de material genético, como habilitação, individual ou conjunta à adoção de crianças e adolescentes. Para evitar situações excludentes o Conselho Federal de Medicina expressamente autorizou o  uso das técnicas procriativas aos pares homossexuais.[5]

A resistência que ainda existe em aceitar a homoparentalidade decorre da falsa idéia de que são relações promíscuas, não oferecendo ambiente saudável para o bom desenvolvimento de uma criança. Também é alegado que a falta de referências comportamentais pode acarretar sequelas de ordem psicológica e dificuldades na identificação sexual do filho. Mas estudos realizados a longo tempo mostram que essas crenças são falsas. O acompanhamento de famílias homoafetivas com prole não registra a presença de dano sequer potencial no desenvolvimento, inserção social e sadio estabelecimento de vínculos afetivos. Ora, se esses dados dispõem de confiabilidade, a insistência em rejeitar a regulamentação de tais situações só tem como justificativa indisfarçável postura homofóbica.

O fato é que, existindo um núcleo familiar, constituído como união estável ou pelo casamento, não há como deixar de reconhecer a dupla paternidade.

No entanto, para a obtenção do duplo registro ainda é necessário promover uma ação judicial, pois resiste o legislador a garantir o registro em nome dos dois pais. Cabe lembrar que, sendo os pais são casados, existe presunção da paternidade, a impor o reconheciemnto da dupla parentalidade.

Ora, impedir o registro em sede adminsitrativa, obriga os pais a juridicizar o pedido, trazendo prejuízos a todos. Até o trânsito em julgado da sentença o filho  não terá qualquer direito com relação a quem também exerce o poder familiar e  desempenha a função de pai ou de mãe.

Além de ser negado ao filho o direito à identidade desde o nascimento – um dos mais significativos atributos da parsonalidade – a falta de registro gera restrições de outras ordens. Por exemplo, não pode o filho ser inscrito como dependente dos dois pais nos rescpectivos planos de saúde. Também não terão ambos acesso à licença-maternitade ou licença-paternidade.

Aqui um questionamento. Quando se tratam de dois pais, cada um deles terá somente cinco dias de licença? E quando forem duas as mães, ambas poderão usufruir do prazo de quatro meses da licença-maternidade? Na tentativa de contornar, ao menos em parte, este paradoxo, foi assegurada licença-materndiade  não só à segurada mas também ao segurado e, a qualquer deles, em caso de adoção conjunta.[6]

Apesar do avanço, há que se reconhecer que melhor é falar em   licença-natalidade ao invés de licença-maternidade ou licença-paternidade.  Esta é a proposta do Estatuto da Diversidade Sexual elaborado pela  Ordem dos Advogados do Brasil.[7] Licença-natalidade, pelo período de 180 dias, concedida indistintamente a qualquer dos pais. Durante o período inicial de 15 dias, a licença beneficia a ambos. O prazo remanescente é usufruído por qualquer deles, de forma não cumulativa, do modo que deliberarem.  Como o tema está previsto na Constituição Federal, foi apresentada também uma proposta de emenda constitucional, que já se encontra no Senado Federal.[8]

Ninguém duvida que, negar a realidade, não reconhecer direitos só tem uma triste sequela: filhos são deixados a mercê da sorte, sem qualquer proteção jurídica. Livrar um dos pais da responsabilidade pela guarda, educação e sustento da criança é deixá-la em total desamparo. É subtrair dos pais o dever de proteger, é sonegar do filho o direito ser protegido.

A condição familiar dos pais em nada pode influenciar  na definição da parentalidade. Para o estabelecimento do vínculo de afetividade, basta que se identifique quem desfruta da condição de pai, quem o filho considera seu pai, sem perquirir a realidade biológica, presumida, legal ou genética.

Presentes os requisitos para o reconhecimento da filiação homoaperental, negar sua presença é deixar a realidade ser encoberta pelo véu do preconceito.

 

 

Publicado em 15/11/2013.

[1] Advogada

Membro do Instituto Proteger

Presidenta da Comissão da Diversidade sexual da OAB

Vice-Presidenta Nacional da IBDFAM

Ex-desembargadora do TJRS

 

[2] ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05/05/2011.

[3] STJ, REsp 1.183.378 – RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2011.

[4] Resolução 173/2003.

[5] Resolução 2.013/ 2013.

[6] Lei nº 12.873 de  25/10/2013.

[7] Texto disponível no site: www.estatutodiversidadesexual.com.br

[8] PEC 110/2011, apresentado pela Sem.Marta Suplicy.

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