Maria Berenice Dias[1]
A tendência de engessamento dos vínculos afetivos sempre existiu, variando segundo valores culturais e, principalmente, influências religiosas dominantes em cada época. Historicamente o modelo de família consagrado pela lei é conservador: entidade matrimonial, patriarcal, patrimonial, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual.
Mas a realidade atual impõe uma visão plural das estruturas familiares, tornando imperioso inserir no conceito de entidade familiar os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue assegurar. Por isso é necessário reconhecer que as uniões entre pessoas, independente da identidade sexual do par, constituem uma união de afetos precisam ser identificadas. A mais perversa consequência da exclusão do âmbito da tutela jurídica é invisibilidade e a negação de direitos a que são condenadas as uniões homoafetivas.
Apesar da omissão do legislador em aprovar leis que garantam direitos às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis não pode significar que elas não possuem direito algum. Mas, apesar de focos de resistência, vêm se consolidando conquistas nas diversas justiças, instâncias e tribunais de todos os estados. Não só a justiça estadual, também a justiça federal assegura direitos no âmbito do direito das famílias, direitos sucessórios, previdenciários e trabalhistas. As decisões contam-se às centenas.[2]
Como são as manifestações dos tribunais superiores que balizam o entendimento das demais instâncias, cabe lembrar os avanços que já ocorreram. Data do ano de 1998 a primeira decisão do Superior Tribunal de Justiça que, afirmando a existência de sociedade de fato, assegurou ao parceiro homossexual a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum.[3] Ainda que estabelecida a competência das varas cíveis,[4] a Corte vem admitindo a partilha de bens a depender de prova da mútua colaboração.[5]
O Superior Tribunal Eleitoral, ao estender a inelegibilidade da parceira do mesmo sexo, atestou a existência de uma união estável homossexual.[6] Mais recentemente, o STJ reconheceu a possibilidade jurídica da ação declaratória de união homoafetiva, sob o fundamento de que não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. Afirma o Min. Antônio de Pádua Ribeiro que os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Ponderou o Relator: Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. E conclui: Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. [7]
E, falando da postura do STJ frente à população LGBT, não há como deixar de citar o reconhecimento de direito dos transexuais à alteração do nome e identidade de gênero[8], inclusive homologando sentenças estrangeiras que autorizaram a redesignação sexual em países outros.[9]
Mas é no âmbito do direito previdenciário que se multiplicam as decisões, principalmente da justiça federal. O tema chegou no STJ no ano de 2005, que admitiu a inclusão do companheiro como dependente em plano de assistência médica reconhecendo que a relação homoafetiva gera direitos analogicamente à união estável. Disse o Min. Humberto Gomes de Barros que o homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana.[10]
Em outro julgamento, o mesmo Relator, ao reafirmar a existência do direito à inclusão no plano assistencial ressalta: A questão a ser resolvida resume-se em saber se os integrantes de relação homossexual estável têm direito à inclusão em plano de saúde de um dos parceiros. É grande a celeuma em torno da regulamentação da relação homoafetiva (neologismo cunhado com brilhantismo pela e. Desembargadora Maria Berenice Dias do TJRS). Nada em nosso ordenamento jurídico disciplina os direitos oriundos dessa relação tão corriqueira e notória nos dias de hoje. A realidade e até a ficção (novelas, filmes, etc) nos mostram, todos os dias, a evidência desse fato social. Há projetos de lei, que não andam, emperrados em arraigadas tradições culturais. A construção pretoriana, aos poucos, supre o vazio legal: após longas batalhas, os tribunais, aos poucos proclamam os efeitos práticos da relação homoafetiva. Apesar de tímido, já se percebe algum avanço no reconhecimento dos direitos advindos da relação homossexual.[11]
A pensão por morte ao companheiro de relacionamento homoafetivo também já foi concedida pelo STJ, reconhecendo, inclusive, a legitimidade do Ministério Público para intervir no processo em que ocorre reivindicação de pessoa, em prol de tratamento igualitário quanto a direitos fundamentais. Disse o Min. Hélio Quaglia Barbosa: O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Eis o fundamento da decisão: Por ser a pensão por morte um benefício previdenciário, que visa suprir as necessidades básicas dos dependentes do segurado, no sentido de lhes assegurar a subsistência, há que interpretar os respectivos preceitos partindo da própria Carta Política de 1988 que, assim estabeleceu, em comando específico: ‘Art. 201 – Os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a: […] V – pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, obedecido o disposto no § 2 º. Não houve, pois, de parte do constituinte, exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos no campo do direito previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deverá ser preenchida a partir de outras fontes do direito.[12]
Agora, mais uma vez, o STJ reafirma: os que vivem em uniões de afeto com pessoas do mesmo sexo estão enquadrados no rol dos dependentes preferenciais dos segurados, no regime geral, bem como dos participantes, no regime complementar de previdência, em igualdade de condições com todos os demais beneficiários em situações análogas. A Min. Fátima Nancy Andrigui, ressaltou que a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo sexo não pode ser ignorada em uma sociedade com estruturas de convívio familiar cada vez mais complexas, para se evitar que, por conta do preconceito, sejam suprimidos direitos fundamentais das pessoas envolvidas. Segundo a Relatora, enquanto a lei civil permanecer inerte, as novas estruturas de convívio que batem às portas dos tribunais devem ter sua tutela jurisdicional prestada com base nas leis existentes e nos parâmetros humanitários que norteiam não só o direito constitucional, mas a maioria dos ordenamentos jurídicos existentes no mundo. Diante da lacuna da lei que envolve o caso em questão, a aplicação da analogia é perfeitamente aceitável para alavancar como entidade familiar as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Se por força do artigo 16 da Lei n. 8.213/91, a necessária dependência econômica para a concessão da pensão por morte entre companheiros de união estável é presumida, também o é no caso de companheiros do mesmo sexo, diante do emprego da analogia que se estabeleceu entre essas duas entidades familiares.[13]
Ao depois, o INSS, em decorrência de decisão judicial, estabeleceu os procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro homossexual em sede administrativa.[14] Deste modo, escancaradamente afronta ao princípio da igualdade não assegurar o mesmo direito aos homossexuais em se tratando de previdência privada. De todo descabido conceder direitos aos empregados celetistas e excluir os mesmos direitos de quem é segurado por entidades previdenciárias estatais ou federais. Daí a recente determinação da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, que reconhece como dependente o companheiro do beneficiário titular de plano privado de assistência à saúde, seja pessoa do sexo oposto ou do mesmo sexo.[15]
De outro lado, o compromisso de dar efetividade à norma constitucional que impõe, com prioridade absoluta, que seja assegurar a crianças e adolescentes proteção integral, levou a justiça a reconhecer a eles o direito de serem adotados por pares do mesmo sexo. Em 2006, por decisão unânime, o TJ-RS[16] deferiu à parceira da adotante a adoção dos filhos que haviam planejado adotar em conjunto. Esta decisão, ao ser confirmada pelo STJ,[17] selou de vez o reconhecimento de que a divergência de sexo é indiferente para a configuração de uma família.
Na medida em que se consolida a orientação jurisprudencial, emprestando efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo, começa a alargar-se o espectro de direitos da homoafeição. Inúmeras decisões despontam no panorama nacional, a mostrar a necessidade de cristalizar uma orientação que acabe por motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem da tutela jurídica. Consagrar os direitos em regras legais com certeza é a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que vem suprindo a lacuna legislativa, por meio de uma visão plural das estruturas familiares.
A partir dos balizamentos levados a efeito pelo Superior Tribunal de Justiça, que tem a seu encargo impor respeito à legislação infraconstitucional, perde significado o irresponsável silêncio da lei. Toda a caminhada que prioriza o direito à individualidade necessariamente impõe à eliminação das diferenças, única forma de atingir o tão almejado respeito à dignidade humana.
O caminho está aberto. Basta que os juízes cumpram com sua verdadeira missão: fazer Justiça. Acima de tudo, precisam ter sensibilidade para tratar de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam ser julgadas com mais sensibilidade e menos preconceito. Os princípios de justiça, igualdade e humanismo é que devem presidir as decisões judiciais. Afinal, a imparcialidade não pode servir de empecilho para o reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada. Não mais se concebe conviver com a exclusão e com o preconceito em um estado que se quer Democrático de Direito.
Publicado em 13/06/2010.
[1] Advogada especializada em direito das famílias, sucessões e direito homoafetivo
Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
www.mbdias.com.br
www.direitohomoafetivo.com.br
[2] Disponíveis em www.direitohomoafetivo.com.br
[3] STJ, REsp 148897-MG, 4ª T. rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 10.02.1998.
[4] STJ, REsp 323.370-RS, 4ª T. – Rel. Min. Barros Monteiro – j. 14.12.2004; STJ, REsp 502.995-RN, 4ª T. Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 26/04/2005.
[5] STJ, Resp 773.136-RJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.10.2006; STJ, REsp 648.763/RS, 4.ª T., Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07.12.2006.
[6] TSE, REsp. Eleitoral 24.564, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01.10.2004.
[7] STJ, REsp 820475-RJ, 4ª T. Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, j. 02.09.2008.
[8] STJ, 3.ª T., REsp 678.933/RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 22.03.2007; STJ – Resp 1.008.398 – SP, 4ª T.Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15 de outubro de 2009; STJ – Resp 737.993 –MG, 4ª T. Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 10.11. 2009.
[9] STJ – SE 001058-IT 2005/0067795-4, rel. Min. Barros Monteiro, j. 01.08.06; STJ-SE 2.149 – IT 2006/0186695-0, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 04.12. 2006; STJ – SE 002.732 – IT 2007/0105198-0, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07.04.2009; STJ – SE 004179 – IT 2008/0273512-), Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07.04.2009.
[10] STJ, REsp 238.715-RN, 3ª T. Rel. Min. Humberto Gomes De Barros, j. 19.05.2005.
[11] STJ, REsp 238.715-RS, 3ª T. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 07.03.2006.
[12] STJ, REsp 395904-RS, 6ª T. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 13.12.2005.
[13] STJ , REsp 1.026.981-RJ, 4ª T.Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2010.
[14] Instrução Normativa 25, de 07.06. 2000.
[15] Súmula Normativa 12/2010 da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, de 04.05. 2010.
[16] TJRS, 7.ª C.Cív., AC 70013801592, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 05.05.2006
[17] STJ, 4ª T, Resp 889.852/RS, Rel. Luis Felipe Salomão, j. 27.04.2010.