Maria Berenice Dias[1]
Decisão do 4º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, de 22 de junho de 2001, por maioria de votos, deferiu revisão criminal, atribuindo efeito retroativo à condenação que havia sido imposta ao réu antes da alteração da jurisprudência que emprestou classificação mais benéfica ao delito pelo qual havia sido ele condenado. Esta decisão, por admitir a possibilidade revisional da pena, tomando por parâmetro não o surgimento de lei mais benéfica, mas de jurisprudência mais benevolente, alcançou larga repercussão, pelo seu caráter inovador, pois pela vez primeira admitiu-se a aplicação retroativa fora do parâmetro estritamente legal. O longo e erudito voto invocou o princípio da isonomia, para sustentar que, em face da evolução da jurisprudência, descabido seria manter a apenação anteriormente imposta, o que ensejaria tratamento desigual a réus sujeitos a diferentes penas pela prática de delitos iguais.
A publicização de tal julgamento, no entanto, além do ineditismo de admitir nova possibilidade revisional, acabou gerando profunda reação social e verdadeiro clamor do movimento de mulheres. É que o réu havia cometido estupro, crime que a Lei 8072/90 arrola como hediondo. Esta Lei dos Crimes Hediondos, além de indicar os crimes que assim passaram a ser considerados, declinou os dispositivos legais a que se refere. Assim o artigo 1º diz: São considerados hediondos os crimes de … estupro (art. 213, caput “e” sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único). Mesmo tratamento foi deferido ao atentado violento ao pudor. Ademais, o art. 6º majorou a pena de todos os crimes que elencou. Ora, diante de tão clara explicitação legal, é inquestionável que a lei considerou hediondo o estupro independentemente de resultar em lesão corporal grave ou morte.
Além da majoração das penas, conseqüências outras foram impostas pela lei. Os crimes foram considerados inafiançáveis, não fazendo jus os infratores à liberdade provisória e nem à anistia, graça e indulto. A pena deve ser cumprida integralmente em regime fechado, só havendo possibilidade de obtenção de livramento condicional após o cumprimento de dois terços.
Esses agravamentos fizeram surgir questionamentos de ordem doutrinária e jurisprudencial sobre a constitucionalidade da lei, principalmente em face do impedimento de progressão da pena, tida como garantia constitucional, visto que o inc. XLVI do art. 5º da Constituição Federal afirma que a lei regulará a individualização da pena. Contudo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal já decidiu que não há inconstitucionalidade no rigor legal frente à caracterização legal da hediondez.
Ante esse panorama, dúvida não há de que o delito de estupro é sempre crime hediondo, ficando seu autor sujeito às novas penas e aos rigores previstos na lei que assim o capitulou.
Entretanto, decisão do Supremo Tribunal Federal, de 8 de junho de 1999, tendo como Relator o Min. Nery da Silveira, de forma singela afirmou que, para o estupro ser classificado como crime hediondo, é necessário que resulte lesão corporal de natureza grave ou morte. Dita distinção acabou por operar a desclassificação do estupro que passou a ser chamado de “simples”. Ou seja, o estupro deixou de ser considerado um crime hediondo. Hediondo é somente sua forma “qualificada”, isto é, quando resultar lesão corporal grave ou morte da vítima. Esta verdadeira graduação ou hierarquização, sem maiores questionamentos ou indagações, foi acolhida de pronto, consolidando uma jurisprudência que passou a ser aplicada por juízes e repetida pelos tribunais de todo o país, chegando, inclusive, a ensejar a revisão da pena pelo tribunal gaúcho.
Dita orientação, felizmente não unânime, além de flagrantemente contrária à lei, revela nítido caráter sexista, pois deixa de atentar que a hediondez do estupro está na sua prática e não nas seqüelas de ordem física que possa ter provocado na vítima. Trata-se de delito complexo que, além de atentar contra a liberdade sexual da mulher, agride sua integridade física, emocional e mental. A essência do crime é o uso da violência na prática do ato sexual indesejado, não havendo a possibilidade de se ter como qualificativo de maior ou menor hediondez a ocorrência de lesões corporais ou a morte. É evidente que não é a impossibilidade para o desempenho das ocupações habituais por mais de trinta dias ou a aceleração do parto, por exemplo, que fazem do estupro um crime “qualificado”, sendo classificado como “simples” se resultar gravidez. Ora, não são meras conseqüências de ordem física que caracterizam o estupro como crime hediondo, mas sim as seqüelas de ordem psíquica e emocional que marcam a mulher para o resto da vida, ainda que de forma invisível. Como as lesões psicológicas são irreversíveis, afirmar que o estupro “simples” escapa à regulamentação da Lei 8072/90, além de evidenciar flagrante desrespeito à lei, também afronta aos princípios constitucionais que asseguram a igualdade e veda a discriminação em razão do sexo. Igualmente deixa à mostra o descumprimento dos tratados internacionais, em especial a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que foi subscrita pelo Brasil.
A Justiça, ao abrandar a incidência da lei sobre o réu, acaba penalizando a vítima, que ainda é vista como objeto sexual, havendo a tendência de fazer recair sobre ela boa parte da responsabilidade pelo acontecido. A exigência da lesão grave ou morte acarreta verdadeira banalização do delito cuja vítima é a mulher, operando verdadeira violência institucional contra o direito penal.
Esta postura, que vem se alastrando, significa verdadeiro retrocesso das conquistas feministas e evidencia que ainda existe no Judiciário uma postura preconceituosa e discriminatória, estando a jurisprudência a praticar um verdadeiro estupro da lei, um crime duplamente hediondo.
Publicado em 11/07/2003.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
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