Maria Berenice Dias[1]
Como existe a crença de que ninguém é feliz sozinho sem ter alguém para amar, sempre houve a tentativa de manter as pessoas dentro do casamento, que antes até indissolúvel era.
Foi necessária uma luta de um quarto de século para, no ano de 1977, ocorrer a aprovação do divórcio. Ainda assim, inúmeras eram as restrições e os entraves para a sua concessão. Algumas mudanças amenizaram alguns requisitos, mas a separação, ainda que consensual, só podia ser obtida depois de um ano do casamento. A separação litigiosa dependia da identificação de culpados, e somente o “inocente” tinha legitimidade para ingressar com a ação. Depois, era necessário aguardar um ano para converter a separação em divórcio.
Já o divórcio direto estava condicionado ao prazo de dois anos da separação de fato. Ou seja, dependia do decurso do tempo ou de simples declaração de duas testemunhas dizendo que o casal estava separado por este período.
Todos esses artifícios pretendiam desestimular o fim do casamento. Mas, apesar da insistência do legislador, não adianta, todos perseguem o sonho da felicidade, que nem sempre é encontrada em uma primeira escolha.
Decorridos mais de 30 anos de vigência da Lei do Divórcio, ninguém duvida que estava mais do que na hora de acabar com a duplicidade de instrumentos para a obtenção do divórcio. Facilitando o procedimento, abrevia-se o sofrimento daqueles que desejam pôr fim ao casamento e buscar em novos relacionamentos a construção de outra família.
Por isso está sendo tão festejada a EC nº 66/2010. Ao dar nova redação ao art. 226, § 6º da Constituição Federal, fez desaparecer a separação eliminando prazos e a perquirição de culpa para a dissolução da sociedade conjugal. Qualquer dos cônjuges pode, sem precisar declinar causas ou motivos, e a qualquer tempo, buscar o divórcio. A nova regra entrou imediatamente em vigor, não carecendo de regulamentação. Afinal, o divórcio está regrado no Código Civil, e a Lei do Divórcio manda aplicar ao divórcio consensual o procedimento da separação por mútuo consentimento (art. 40, § 2º). Assim, nada mais é preciso para implementar a nova sistemática.
O avanço é significativo e para lá de salutar, pois atende ao princípio da liberdade e respeita a autonomia da vontade. Como não há prazo para casar, nada justifica a imposição de prazos para o casamento acabar. Além do proveito a todos, a medida vai produzir significativo desafogo do Poder Judiciário, pois reduz o número de ações, acaba com prazos e elimina anos de conflitos. Mas certamente o ganho maior foi espancar definitivamente a culpa do âmbito do Direito das Famílias.
As pessoas ainda casadas, separadas de fato ou de corpos, separadas judicial ou extrajudicialmente podem pedir imediatamente a decretação do divórcio sem haver a necessidade de culpabilizar o outro ou aguardar o decurso de qualquer prazo.
O pedido de separação tornou-se juridicamente impossível. A novidade atinge as ações em andamento. Todos os processos de separação perderam o objeto por impossibilidade jurídica do pedido (CPC 267, inc. VI). Não podem seguir tramitando demandas que buscam uma resposta não mais contemplada no ordenamento jurídico. No entanto, como a pretensão do autor era pôr um fim ao casamento, e a única forma disponível no sistema legal pretérito era a prévia separação judicial, no momento em que tal instituto deixa de existir, ao invés de extinguir o processo deve o juiz transformá-lo em ação de divórcio, eis que ocorreu a superveniência de fato extintivo ao direito objeto da ação, que precisa ser reconhecido de ofício (CPC 462).
Não há a necessidade de a alteração ser requerida pelas partes. Cabe ao juiz dar ciência às partes da transformação da separação em divórcio. Caso os cônjuges silenciem, significa concordância que a ação prossiga com a concessão do divórcio. A eventual discordância de uma das partes – seja do autor, seja do réu – não impede a dissolução do casamento. Exclusivamente na hipótese de haver expressa oposição de ambos os separandos não cabe a concessão do divórcio. Mas deve o juiz decretar a extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido, pois não há como ser proferida sentença chancelando direito não mais previsto na lei (CPC 267, inc. VI).
Como não mais cabe a identificação de culpados, não haverá mais necessidade da produção de provas e inquirição de testemunhas. Existindo filhos menores ou incapazes, as questões relativas a eles precisam ser acertadas. É necessária a definição da forma de convivência com os pais – já que a preferência legal é pela guarda compartilhada – e o estabelecimento do encargo alimentar.
Sequer os aspectos patrimoniais carecem de definição, eis ser possível a concessão do divórcio sem partilha de bens (CC 1.581). A demanda se limitará a definir eventual obrigação alimentar entre os cônjuges e a questão do nome, caso algum deles tenha adotado o sobrenome do outro. Persiste a possibilidade de ocorrer o achatamento do valor dos alimentos, se restar comprovado que a situação de necessidade resultar da “culpa” de quem os pretenda (CC 1.694 § 2º). Tal, no entanto, não se confunde com a “culpa” pela separação (CC 1.573) que não mais cabe ser perquirida, encontrando-se derrogados os artigos 1.702 e 1.704 do Código Civil.
Com o fim do instituto da separação também acaba a odiosa prerrogativa do titular do nome buscar que o cônjuge que o adotou seja condenado a abandoná-lo. Não mais continuaram em vigor os artigos 1.571, § 2º e 1.578 do Código Civil.
Como desapareceu o instituto da separação, não é mais cabível a conversão da separação em divórcio (CC 1.580). Os separados judicialmente devem continuar assim se qualificando, apesar do estado civil que os identificam não mais existir. Mas nada impede a reconciliação, com o retorno ao estado de casado (CC 1.577).
Felizmente um verdadeiro calvário chega ao fim. A mudança provoca uma revisão de paradigmas. Além de acabar com a separação e eliminar os prazos para a concessão do divórcio, espanca definitivamente a culpa do âmbito do Direito das Famílias.
Mas, de tudo, o aspecto mais significativo da mudança talvez seja o fato de acabar a injustificável interferência do Estado na vida dos cidadãos. Enfim passou a ser respeitado o direito de todos de buscar a felicidade, que não se encontra necessariamente na mantença do casamento, mas, muitas vezes, com o seu fim.
Publicado em 24/07/2010.
[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões
Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS
Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM
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