Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Sucessões

Casar ou não casar? Dúvidas sobre questões sucessórias

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Sumário: 1. Concorrência sucessória – 2. Base de incidência – 3. Quando há descentes – 4. Quando há ascendentes – 5. Quando há herdeiros colaterais – 6. Quando não há herdeiros – 7. Casar ou viver em união estável?

 

 

Resumo

As novas regras do direito sucessório trazidas pelo atual Código Civil – que data do ano de 2002 – acabaram por gerar enormes questionamentos no âmbito do direito matrimonial. Diverso foi o tratamento concedido ao casamento e à união estável, principalmente quando a dissolução decorre da morte. O cônjuge é herdeiro necessário e está em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária. Já o companheiro é apenas herdeiro legítimo, figurando após os parentes colaterais. O mais polêmico instituto – o direito de concorrência sucessória – também tem regramento diferenciado, a depender da natureza do vínculo que une o casal. No casamento está condicionado ao regime de bens e na união estável não. Além disso, a base de cálculo é diversa, incidindo sobre os bens particulares do cônjuge falecido e sobre os aquestos amealhados onerosamente pelos companheiros. Todas essas diferenças têm provocado grandes dúvidas e vêm dividindo a doutrina e ensejando o surgimento de jurisprudência divergente. Agora ninguém mais sabe se deve casar ou simplesmente viver junto.  Daí a necessidade de figurar as hipóteses mais recorrentes na tentativa de identificar qual é a melhor solução para que seja respeitado o desejo dos noivos não só quando da separação, mas principalmente quando da morte de um deles.

 

Palavras chaves

Sucessões, casamento, união estável, concorrência sucessória

 

Abstract

The new rules of inheritance law under the present Civil Code – dated 2002 – ended up raising serious questions within matrimonial law. The treatment given to marriage and common-law marriage has been manifold, mainly when dissolution takes place due to the death of a partner. A spouse is a necessary heir and ranks third in the order of hereditary succession. Yet a partner is but a legitimate heir, coming after collateral relatives. The most controversial aspect – the right of succession concurrent – is also held by diverse rules, depending on the nature of the connection that unites the couple. In marriage, it is conditioned by a property regime but it is not so in common-law marriage. Furthermore, the calculation basis is diverse, incurring on the private assets of the decedent and on the assets acquired onerously by the partners. All these differences have generated major doubts which have been dividing the doctrine and have triggered diverging case law. It is unclear now whether it is better to marry or simply live together.  Hence the need to figure the most recurring hypotheses so as to identify which solution is better in respecting the wishes of the couple.

 

Keywords

Succession, matrimony, common-law marriage, succession concurrent

 

É enorme a dificuldade de falar em questões patrimoniais, separação, divórcio e morte quando se está vivendo um grande amor. Prever a sua finitude gera ressentimentos, medo e insegurança, como se estivesse sendo posta em dúvida a eternidade das juras feitas. Até parece mau agouro em momento de pura alegria e felicidade. Afinal, o afeto é tão intenso que as pessoas desejam viver juntas para sempre.

Mas compartilhar vidas nem sempre significa querer embaralhar patrimônio ou dividir bens. Antes tudo era bem fácil. Bastava o par eleger o regime de bens via pacto antenupcial ou contrato de convivência. No entanto, as desastrosas alterações trazidas pelo Código Civil, principalmente no âmbito do direito sucessório, ensejam inúmeras interrogações. Ninguém sabe bem o que pode acontecer, pois são diferentes as sequelas patrimoniais quando ocorre a dissolução do vínculo de convivência pela morte de um do par. Se tudo isso não bastasse, a lei, de forma para lá de injustificável, no casamento atrelou questões sucessórias ao regime de bens e à existência ou não de patrimônio antes do casamento. Estas diferenciações, porém, não existem na união estável quando também há a possibilidade de ser eleito qualquer regime de bens.  Deste modo, situações absolutamente iguais produzem efeitos diversos. O fato de nenhum do par ter bens; um deles ou ambos ter patrimônio; receber uma doação ou uma herança; haver ou não herdeiros; são hipóteses que recebem tratamento diferenciado. Distinta será a partilha, se o casal optar por casar ou simplesmente viver juntos.

Há outras diferenças surpreendentes. O cônjuge agora é herdeiro necessário (CC 1.845) e figura em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária (CC 1.829, III). O companheiro está em último lugar e tem direito à totalidade da herança somente se não existirem herdeiros colaterais (CC 1.790, IV). Assim, o direito à herança do cônjuge não pode ser excluído da sucessão, mas o direito do companheiro pode ser afastado.[2]

Daí a pergunta que não quer calar: é melhor casar ou viver em união estável? Firmar pacto antenupcial ou contrato de convivência? Fazer testamento? Clausular bens de incomunicabilidade? O pior é que para estas indagações não existe uma resposta única. O que todo mundo repete, nada diz: cada caso é um caso!

 

  1. Concorrência sucessória

O Código Civil trouxe a mais controversa novidade: o chamado direito de concorrência sucessória, em que cônjuges e companheiros disputam parte da herança com os descendentes, os ascendentes e até com os parentes colaterais (CC 1.790 e 1.829). Isto é, a lei constitui um condomínio entre herdeiros, cônjuges e companheiros, ao conceder a estes percentagem da herança.   Porém, tal direito não recebe o mesmo tratamento no casamento e na união estável.

No casamento, o direito do cônjuge sobrevivente de concorrer com os descendentes depende do regime de bens e está condicionado à existência de bens particulares. Já o direito concorrencial do companheiro existe sempre (CC 1.790). Incide sobre os bens comuns, independente do regime eleito via contrato de convivência e do fato de haver ou não patrimônio antes da união. [3]

Outro fator complicador. No casamento, ausente pacto antenupcial, vigora o regime da comunhão parcial (CC 1.640). Na união estável também (CC 1.725). No entanto, apesar de haver a possibilidade de os companheiros firmarem contrato dispondo sobre o regime de bens, tal não se reflete no direito de concorrência. Isto é, a vontade dos conviventes não é levada em conta. Já no casamento, os noivos têm a possibilidade de afastar o direito de concorrência optando pelo regime da comunhão universal ou da separação convencional de bens[4]. Mesmo que, por meio de pacto de convivência, adotem o regime da separação convencional, persiste o direito do sobrevivente de concorrer sobre o que for adquirido onerosamente no período da união.[5]

 

  1. Base de incidência

Sempre que se fala em sucessão, cabe um lembrete. A depender do regime de bens, cônjuges e companheiros fazem jus à meação – metade dos bens comuns – o que não se confunde com a herança. Portanto, em sede de direito das sucessões, a primeira operação sempre é excluir do acervo sucessório a meação a que eventualmente têm direito cônjuges e companheiros.

Tal operação nada tem a ver com a identificação do acervo a servir de base de incidência do direito concorrente. No casamento, adotado o regime da comunhão parcial, o direito de concorrência do viúvo é calculado sobre os bens particulares do falecido (adquiridos antes da união, por doação ou herança). É sobre este patrimônio que o cônjuge concorre com os herdeiros descendentes.[6] Assim, se o casal teve dois (2) filhos, o viúvo, além da meação, recebe 1/3 dos bens particulares a título de direito concorrente.

Na união estável a base de incidência do direito concorrente é a meação do falecido, ou seja, o patrimônio adquirido onerosamente durante o período de convívio. Deste modo, se o casal teve dois (2) filhos, eles ficarão com a totalidade dos bens particulares e mais 2/3 da meação do genitor falecido. O companheiro, além da sua meação, recebe 1/3 da meação do falecido e nada dos bens particulares.

Diante de todo este intrincado panorama, o jeito é figurar as situações mais comuns para que a vontade do casal seja respeitada.   Não há outro modo de responder à seguinte pergunta: o melhor é casar ou não casar?

Ainda que se esteja a falar em início de relacionamentos, paradoxalmente há que se atentar ao seu fim. Assim, é indispensável prever a existência de descendentes, ascendentes ou somente de parentes colaterais quando da morte de um deles.

 

  1. Quando há descendentes

Para imaginar os desdobramentos sucessórios frente ao cônjuge e ao parceiro sobrevivente, é necessário averiguar a presença de descendentes quando da abertura da sucessão. Tal vale tanto para o casamento como para a união estável.

Quando se trata de casamento, o direito do viúvo está condicionado ao regime de bens. Em face da atual orientação da jurisprudência, somente existe direito de concorrência sucessória no regime da comunhão parcial, e isso se existirem bens particulares.[7] Sobre estes bens é calculado o direito concorrente do cônjuge. Mas, é necessário reconhecer que o direito concorrente existe também no regime da participação final dos aquestos, já que a lei, apesar de nada referir, não o excluiu.

Já na união estável, só se pode falar em concorrência sucessória sobre o patrimônio constituído de forma onerosa durante o período da união. É indiferente o regime de bens eleito por meio de contrato de convivência. Havendo bens comuns, o companheiro sucede junto com os filhos. Sobre os bens particulares nada recebe.

Mais uma diferença. O fato de os descendentes serem comuns ou serem filhos somente do falecido influencia no cálculo do direito de concorrência. Quando o cônjuge sobrevivente é também o genitor dos herdeiros, tem ele garantida a fração de um quarto dos bens particulares (CC 1.832). O companheiro não tem direito a tal parcela mínima.

Outra discrepância. Se a prole é só do falecido, o cônjuge divide com os enteados os bens particulares em partes iguais. Já companheiro recebe a metade do quinhão dos enteados sobre os bens adquiridos durante o período de convívio, os chamados aquestos.

As hipóteses são tantas que cabe trazer as mais recorrentes.

 

– Nenhum do par tem filhos e nem bens. Ana e Beto não tinham bens antes do início da vida em comum, não irão receber doações e nem herança, mas desejam ter filhos e adquirir patrimônio.

Quando da morte de um deles, diferente será a divisão de bens se optarem pelo casamento ou por viverem juntos.

Se casaram sem fazer pacto antenupcial, o regime é o da comunhão parcial. Assim, se tiverem dois (2) filhos e adquiriram bens, quando do falecimento de um, o outro recebe somente a sua meação (50% dos bens que foram adquiridos). O restante, que compõe a herança do falecido, é dividido entre os filhos, uma vez que eles são herdeiros necessários (CC 1.845) e os primeiros figurantes da ordem de vocação hereditária (CC 1.829, I).

No entanto, se optaram por viver em união estável, além da meação o companheiro sobrevivente faz jus a um terço da herança a título de concorrência sucessória, ficando o restante para os dois (2) filhos: um terço para cada um.

 

 

 

– Um do par tem bens particulares, ou seja, bens que foram adquiridos anteriormente à união ou foram percebidos por doação ou por herança. Beto tinha bens antes de se unir com Ana. Tiveram filhos e adquiriram bens durante o casamento.

Na hipótese de terem casado pelo regime da comunhão parcial de bens ou se passaram a viver em união estável, é necessário atentar ao número de filhos. Se Ana e Beto tiveram juntos um (1), dois (2) ou três (3) filhos, a forma de partilhar o patrimônio é igual, mas a base de incidência diferente. Com a morte de Beto, além da meação, Ana faz jus a uma parte igual à dos filhos, a título de concorrência sucessória.

No entanto, se casaram, o direito concorrente de Ana é calculado sobre os bens particulares de Beto.[8] Mas se viviam juntos, o seu direito incide sobre os bens comuns.

 

 

Se eles casaram e tiveram mais de três (3) filhos, Ana tem assegurado um quarto dos bens particulares (CC 1.832). Os 3/4 restantes do patrimônio particular e mais a meação de Beto compõem a sua herança a ser dividida em partes iguais somente entre os filhos.

Porém, se a opção foi viverem em união estável, além da meação, Ana concorre em igualdade de condições com os filhos. Recebe fração igual à deles, independente da extensão da prole, pois ela não tem direito a quota mínima. Diferentemente do que ocorre no casamento, o direito concorrente é calculado sobre os bens comuns, ou seja, a meação de Beto.

Cabe imaginar a existência de cinco filhos comuns.

 

 

 

– Um do par tem filhos e bens particulares, ou seja, bens que foram adquiridos anteriormente à união ou foram percebidos por doação ou por herança. Beto já tinha filhos e patrimônio particular antes de se unir a Ana, tendo juntos amealhado bens, mas não tiveram filhos.

Caso tenham casado pelo regime da comunhão parcial, independente do número de filhos que Beto tinha antes do casamento, quando de sua morte, além da meação Ana vai receber uma parte igual a de seus enteados sobre os bens particulares.[9] Não tem direito a quota mínima de um quarto (1/4) porque os herdeiros não são filhos dela.

No entanto, se optaram por viver em união estável, Ana não tem qualquer direito sobre os bens particulares. Vai receber a sua meação (50% dos bens adquiridos) e mais a metade do que cada filho recebe da meação do pai. A herança de Beto (o que restou da sua meação e mais os bens particulares) é dividida somente entre os seus filhos.

Cabe imaginar a hipótese de Beto ter cinco filhos.

 

 

– Um ou ambos têm filhos e bens. Juntos têm mais filhos e adquirem mais patrimônio. Tanto Ana quanto Beto possuem filhos de relacionamentos anteriores e bens particulares. Juntos têm mais filhos e adquirem outros  bens.

 A hipótese configura o que se chama de “filiação híbrida”. A lei não prevê o que ocorre quando da morte de quem tem filhos antes do casamento e filhos com o sobrevivente.[10]

Do mesmo modo, se a opção foi a união estável, no caso de haver filhos exclusivos e filhos comuns, a lei igualmente nada diz sobre a divisão dos bens adquiridos onerosamente durante a sua vigência. Isto porque, se forem filhos comuns, o quinhão é igual para todos. Se forem filhos só do falecido, o companheiro sobrevivente recebe a metade do que cada filho tem direito (CC 1.790, II).

 

  1. Quando há ascendentes

Como os ascendentes são herdeiros necessários (CC 1.845), inexistindo descendentes, são eles chamados à sucessão. Nesta hipótese assegura a lei direito de concorrência sucessória tanto no casamento como na união estável. No entanto, não mais tem relevância o regime de bens (CC 1.829, II). Ainda assim, o tratamento é diferenciado. Frente aos ascendentes, o viúvo concorre sobre a totalidade da herança (CC 1.837) e não sobre os bens particulares.[11] Na união estável, a maioria entende que o companheiro sobrevivente divide com os ascendentes somente os bens comuns. Os bens particulares vão integralmente para os ascendentes.[12]

 

– Não existem descendentes e somente ascendentes.  Ana e Beto não tiveram filhos, mas ambos têm pais e juntos amealharam patrimônio.

Na ausência de descendentes, são convocados à sucessão os ascendentes, que são herdeiros necessários (CC 1.829, II). Somente em uma única hipótese no casamento e na união estável os direitos sucessórios do sobrevivente e dos ascendentes são iguais: quando ao filho sobrevivem ambos os genitores, ou seja, aquele que falece não tem descendentes e possui os dois pais.

Assim, se eles casaram e independentemente do regime de bens, quando da morte de Ana, Beto recebe um terço da herança e cada um de seus sogros fração igual (CC 1.837).[13]

Na hipótese de viverem em união estável, o quinhão de Beto e de cada um dos pais de Ana é de um terço (CC 1.790, III).[14]

 

 

 

No caso de sobreviver somente um dos genitores de Ana, se Beto era seu marido, faz jus à metade da herança e seu sogro à outra metade (CC 1.837). Mas se eles viviam em união estável, Beto recebe somente um terço e o pai de Ana dois terços (CC 1.790, III).

 

 

Na hipótese de Ana não tiver pais, ao falecer, mas ter seus quatro (4) avós, se ela e Beto eram casados, ele tem direito à metade da herança e a outra metade é dividida entre os avós de Ana (CC 1.837).  Agora, se Ana e Beto viviam em união estável, Beto recebe somente 1/3 da herança e os 2/3 são partilhados entre os avós de Ana (CC 1.790, III).

 

  1. Quando há somente herdeiros colaterais

Os parentes colaterais não são herdeiros necessários, mas são herdeiros, ou seja, fazem jus à herança se não existirem nem descendentes e nem ascendentes (CC 1.829, IV). Para os parentes colaterais serem afastados da sucessão é indispensável que tal seja deliberado em testamento. Como não se trata de deserdação, o autor da herança não precisa motivar a exclusão. Basta afastá-los ou dispor da integralidade de seu patrimônio sem os contemplar (CC 1.850).

No entanto, se o falecido era casado, nada precisa ser feito para os colaterais nada receberem, pois o cônjuge é herdeiro necessário (CC 1.845) e antecede os colaterais na ordem de vocação hereditária (CC 1.829, III).

Porém, se o falecido vivia em união estável, os colaterais herdam. O companheiro sobrevivente tem direito somente a 1/3 da herança. O restante vai para irmãos, sobrinhos, sobrinhos-neto, tios-avós ou primos do falecido. Bem, ao menos é o que dispõe a lei (CC 1.790, III).[15]

 

– O casal não tem nem descendentes e nem ascendentes e o patrimônio foi adquirido durante a vida em comum. Ana e Beto não têm filhos e tudo o que adquiriram foi pelo esforço comum. Ana tem um primo e Beto somente tem como parente o irmão de seu avô.

Se Ana e Beto eram casados quando do falecimento de um deles, o patrimônio permanece com o outro. Isso porque o cônjuge é herdeiro necessário, excluindo os parentes colaterais.

Na hipótese de viverem em união estável, o sobrevivente, além da meação, recebe 1/3 da herança: 2/3 ficam para o tio-avô de Beto (CC 1.790, II). Se quem faleceu foi Ana, o seu primo é que ficará com o dobro do patrimônio que tocará a Beto.

– O casal opta pelo regime da separação convencional de bens e não tem nem descendentes e nem ascendentes.  Ana e Beto não têm filhos e nem ascendentes. Beto tem como único parente o irmão de seu avô.

Na hipótese de Ana e Beto casarem pelo o regime da separação de bens, vindo Beto a falecer, Ana recebe a totalidade da herança como herdeira necessária (CC 1.838 e 1.845).[16]

Caso optem em viver em união estável e firmem contrato de convivência estabelecendo o regime da separação de bens, com a morte de Beto, Ana fica com 1/3 da herança e o tio-avô fica com 2/3 (CC 1.790, III). Isto porque o regime eleito não afasta o direito de concorrência sucessória.[17]

 

  1. Quando não há herdeiros

Quando alguém não tem nem herdeiros necessários e nem parentes sucessíveis (parentes até o quarto grau), com a sua morte seu patrimônio resta jacente, ou seja, sem dono, cabendo ser recolhido e transferido como herança vacante ao município onde se encontra situado.

Porém, se a pessoa ao falecer era casada ou vivia em união estável, diverso será a o destino de sua herança.

 

– Durante a vida em comum um do par recebe bens clausulados de incomunicabilidade. Ana e Beto não têm filhos e nenhum parente, tendo Beto recebido bens com cláusula de incomunicabilidade. 

Não importa se Ana e Beto casaram ou viveram em união estável. Com o falecimento de Beto, Ana recebe a totalidade da herança. Isto porque a incomunicabilidade diz somente com os bens relativos à meação e não com o direito à herança.

Caso fossem casados, como Beto não tem herdeiros antecedentes, Ana faz jus à herança como herdeira necessária. Recebe os bens ainda que clausulados (CC 1.845).[18]

E, se viveram em união estável, Ana igualmente fica com a totalidade do patrimônio por inexistirem outros herdeiros (CC 1.844).

 

– Nenhum do par deseja que o outro – tanto na separação como por ocasião da morte – receba qualquer bem, nem particular e nem os que forem adquiridos durante a união. Ana e Beto têm bens particulares e pretendem adquirir bens durante a união. Não querem filhos e nem têm herdeiros. Para não haver qualquer comunicação patrimonial devem casar ou viver em união estável?

No casamento, não há como impedir o cônjuge sobrevivente de herdar, independente do regime de bens. Mesmo que tenham optado pelo regime da separação total e tenha o falecido legado todos os seus bens por testamento, o cônjuge herda. Não há como afastar do sobrevivente o direito à legítima: metade do acervo sucessório. A incomunicabilidade decorrente do regime da separação de bens não afasta a condição do cônjuge sobrevivente de herdeiro necessário quando ausentes herdeiros antecedentes (CC 1.845). A disposição testamentária é ineficaz frente à sucessão necessária. A única hipótese de haver a absoluta incomunicabilidade de bens é a adoção do regime da separação convencional de bens e isso se, ao falecido sobreviver herdeiros necessários.  Ou seja, para que Ana nada receba de Beto – nem herança e nem direito concorrente – é necessário que existam herdeiros necessários (descendentes ou ascendentes). Agora, se não houver herdeiros, tudo vai acabar nas mãos do sobrevivente. Deste modo, sequer a elaboração de testamento legando todo o patrimônio consegue excluir do viúvo o direito à legítima (metade da herança). Assim, para Ana não receber nada quando do falecimento de Beto, precisam casar pelo regime da separação de bens, mas Beto precisa ter ao menos um herdeiro necessário: filho, neto, bisneto, pai, mãe, avô ou que seja um bisavô.  É o que basta. Inexistindo herdeiros, para ser cumprido o desejo de ambos o jeito é não casar.[19]

Como na união estável o companheiro não desfruta da condição de herdeiro necessário, a forma de evitar que o sobrevivente receba a herança na condição de herdeiro legítimo (CC 1.790, IV) é firmarem contrato de convivência adotando o regime da separação convencional de bens. Além disso, cada um deve elaborar testamento, legando a quem desejar o seu patrimônio. Deste modo, mesmo não existindo herdeiros integrantes da ordem de vocação hereditária, Ana nada receberá quando da morte de Beto. Como não é herdeira necessária, não receberá herança porque todos os bens foram destinados, por testamento. Também não fará jus a direito de concorrência porque, em face do regime da separação total, inexistem bens comuns.

Esta é a única hipótese que preserva a absoluta incomunicabilidade patrimonial entre duas pessoas que querem somente compartilhar o amor que as une durante a vida.

 

  1. Casar ou viver em união estável?

Diante de todas as situações hipoteticamente figuradas, o que mais surpreende é o fato de ter a lei tratado de forma desigual situações de vida idênticas, ensejando resultados que se afastam do desejo de quem só quer ter o direito de ser feliz.

Ora, se existe o direito de escolher, mister que a vontade manifestada pelo par seja respeitada. Como a Constituição Federal assegura tratamento isonômico ao casamento e à união estável, e a lei confere o direito de eleger o regime de bens – em qualquer das modalidades de convívio: via pacto antenupcial ou contrato de convivência – nada, absolutamente nada, justifica impor, em sede de direito sucessório, a divisão do patrimônio de forma diversa do que foi eleito pelo casal.

Talvez por isso a enorme resistência ao instituto da concorrência hereditária, que ninguém sabe a que veio. Mas todos já se deram conta dos estragos que pode provocar, pois em nenhuma hipótese cônjuge e companheiro recebem tratamento igual. Ainda que as situações sejam absolutamente iguais, o resultado é sempre diferente.

Mais uma vez a responsabilidade é do Poder Judiciário de amoldar a lei à realidade da vida. Para isso basta os juízes terem a coragem de proclamar a inconstitucionalidade de um punhado de dispositivos legais e assegurar a primazia do princípio da liberdade e da autonomia da vontade. Afinal é da Justiça o dever de fazer cumprir o dogma maior de um estado que se diz democrático de direito e tem, como pedra fundamental, o respeito à dignidade da pessoa humana.

 

 

 

Publicado em 27/09/2010.

[1] Advogada
Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
www.mbdias.com.br

www.mariaberenice.com.br

www.direitohomoafetivo.com.br

[2]              O testamento legando todo o patrimônio afasta o companheiro da sucessão, mas não afasta o cônjuge.

[3]              Ao regrar a sucessão na união estável (CC 1.790) parece que o legislador esqueceu que os parceiros podem afastar o regime da comunhão parcial de bens (CC 1.725).

[4]              A lei afasta o direito de concorrência no regime da comunhão universal de bens e no de separação obrigatória (CC 1.829, I). O STJ reconheceu que o regime de separação obrigatória de bens é gênero que consagra duas espécies: a separação legal e a convencional. Uma decorre da lei e outra da vontade das partes e ambas obrigam os cônjuges. Assim, o cônjuge casado mediante separação de bens, não tem direito à meação e tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos o cônjuge não é herdeiro necessário. (STJ:, REsp 992749/MS, Relª. Minª.  Nancy Andrighi, j. 01.12.2009 e STJ, REsp. 1.111.095 – RJ , Rel Min. Fernando Gonçalves, public. 11/02/2010; REsp. 1.111.095 – RJ , Rel Min. Fernando Gonçalves, public. 11/02/2010).

[5]              Depois da decisão do STJ acima referida, o jeito é invocá-la para sustentar a exclusão do direito de concorrência na união estável quando houver contrato de convivência optando pelo regime da separação de bens.

[6]              Esta é a posição amplamente majoritária da doutrina que vinha sido acolhida pela jurisprudência. Sempre permaneci sozinha sustentando que o direito de concorrência deve ser calculado sobre os aquestos: os bens adquiridos onerosamente durante a união. Esta minha posição acabou sendo consagrada pelo STF que, em respeito à vontade manifestada no momento do casamento, assegurou ao cônjuge a meação e o direito de concorrência hereditária sobre os bens comuns. Os bens particulares, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os descendentes. (STJ, 3ª T., REsp 1.117.563/SP, Relª. Minª.  Nancy Andrighi, j. 17.12.2009, DOU 06.04.2010).

[7] Esta era a posição pacificada antes da decisão do STJ acima referida.

[8] Isto até a decisão do STJ.

[9] Isto segundo o que está dita na lei e sustentado pela doutrina, ao menos até a decisão do STJ.

[10]            A doutrina se divide, mas para não ferir o princípio de que filhos merecem tratamento igual, prevalece o entendimento de que o viúvo não faz jus à quota mínima de ¼. Porém há quem sugira cálculos complicados para achar uma solução que não prejudique nem os filhos e nem o viúvo.

[11] A partir da decisão do STJ cabível sustentar que, na concorrência com os ascendentes a base de cálculo limitam-se aos bens comuns.

[12]            Como o caput do art. 1.790 do CC fala em participação “quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união”, a tendência é limitar o direito aos aquestos. No entanto, o inc. III do mesmo dispositivo fala em “direito a um terço da herança”, expressão que permite calcular o direito sobre a totalidade do acervo sucessório.

[13] Aqui também passa a ser possível invocar a decisão do STJ para limitar o direito concorrente do viúvo aos bens particulares.

[14] Pelo princípio da simetria cabe sustentar que o direito concorrencial do companheiro também se limita aos bens particulares, principalmente em face da decisão do STJ.

[15]         Em face da irresignação da doutrina, a jurisprudência vem se inclinando pela inconstitucionalidade deste dispositivo legal. Esta posição está pacificada do TJ de São Paulo. No RS  a Arguição de Inconstitucionalidade n.º 70029390374, julgada em 9.11.2009, por maioria, rejeito a inconstitucionalidade deste dispositivo legal.

[16] Tendo o STJ afastado a condição de herdeira necessária do cônjuge, ela não perceberia nada.

[17] O mesmo julgamento cabe ser invocado par afastar o direito concorrencial também na união estável quando houve a opção pelo regime da separação de bens .

[18] Aqui também cabe invocar a decisão do STJ que afastou a condição de herdeira necessária do cônjuge, neste caso ele não perceberia nada.

 

[19] Esta é a solução ao menos até que se consolide a decisão do STJ que afasta do cônjuge o direito à meação e o de concorrência sucessória.

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