Maria Berenice Dias[1]
No dia 30 de abril comemora-se o Dia Nacional da Mulher. Cumprimentos são trocados, homenagens são prestadas, realizam-se inúmeros eventos. No entanto, o significativo avanço feminino em várias áreas e setores, a justificar comemorações, não pode encobrir a mais cruel seqüela da discriminação, que é a violência doméstica, e que, surpreendentemente, vem aumentando em proporções alarmantes. Basta lembrar que, a cada 4 minutos, uma mulher é agredida em seu próprio lar, por pessoa com quem mantém uma relação de afeto. Conjugando essa estatística da ONU com outro dado, igualmente assombroso, de que somente 10% das agressões são denunciadas, chega-se a um número por demais assustador.
Necessário, assim, que a data sirva não só de um momento de confraternização, mas muito mais para ensejar uma pausa à reflexão e tomada de consciência, tornando-se imperioso que se busque identificar as causas para que soluções possam ser encontradas.
Na sociedade ocidental existe um modelo preestabelecido. Ao homem cabe o espaço público e à mulher, o privado, nos limites da família e do lar. Isso enseja a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor; o outro de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados os papéis ideais de homens e mulheres: ele provendo a família e ela cuidando do lar, cada um desempenhando a sua função. Esses estereótipos são vincados desde muito cedo. As meninas são treinadas para o desempenho da função doméstica, pois recebem de brinquedo somente bonecas, casinhas e panelinhas. Aos meninos é reservado um mundo exterior, pois brincam com bolas, carrinhos e aviões.
Os padrões de comportamento instituídos distintamente para homens e mulheres levam à geração de um verdadeiro código de honra. A sociedade outorga ao macho um papel paternalista, exigindo uma postura de submissão da fêmea. As mulheres acabam recebendo uma educação diferenciada, pois necessitam ser mais controladas, mais limitadas em suas aspirações e desejos. Por isso o tabu da virgindade, a restrição ao exercício da sexualidade e a sacralização da maternidade. Ambos os universos, ativo e passivo, distanciados mas dependentes entre si, buscam manter a bipolaridade bem definida, sendo que ao autoritarismo corresponde o modelo de submissão.
A evolução da medicina, com a descoberta de métodos contraceptivos, bem como as lutas emancipatórias, levaram ao surgimento de uma nova postura feminina, que se está presenciando no contexto atual, e que impôs a redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao se integrar no mercado de trabalho, saiu para fora do lar, impondo ao homem a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa. Essa mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro preestabelecido, ensejando um desequilíbrio terreno, propício ao surgimento de conflitos.
Nesse contexto é que surge a violência, que se justifica como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero. Quando um não está satisfeito com a atuação do outro no cumprimento do modelo, surge a guerra dos sexos, e cada um dos envolvidos usa suas armas: eles, os músculos; elas, as lágrimas.
As mulheres, por evidente, levam a pior, tornam-se vítimas da violência masculina.
De outro lado, acostumada a se realizar exclusivamente com o sucesso de seu par e o pleno desenvolvimento de seus filhos, não consegue, essa nova mulher, encontrar em si mesma o centro de gratificação, o que gera um profundo sentimento de culpa que a impede de usar a queixa como forma de fazer cessar a agressão. É que, em seu íntimo, se acha merecedora da punição por ter desatendido as tarefas que lhe são afeitas como a rainha do lar.
Somente a partir da conscientização de que o novo modelo de família deve se basear na mútua colaboração e no afeto é que se poderá chegar à tão almejada igualdade e ao fim da violência.
Publicado em 16/07/2003.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
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