Maria Berenice Dias[1]
Ninguém divida de que se vive a era dos direitos humanos, em que a dignidade humana, o direito à igualdade e o respeito à liberdade ocupam lugar destacado. Cada vez mais aumenta a preocupação pela inclusão de todos no âmbito de tutela dos direitos e garantias fundamentais, principalmente dos vulneráveis, invariavelmente constituídos pelas minorias. Não há outra justificativa para a discriminação de que são vítimas determinados segmentos da população. Se não correspondessem a parcelas de menor expressão numérica, não seriam marginalizados. E o só fato de serem menos numerosos é que leva quilombolas, índios, gays etc. serem alvos indefesos de discursos raivosos, podendo ser incendiados, espancados e mortos.
Dentro dos segmentos dos excluídos as pessoas LGBTI – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, são as maiores vítimas, pois são alvo tanto do repúdio social como do preconceito no âmbito familiar. Dentre esta população travestis e transexuais são ainda mais vulneráveis. Como sua identidade sexual é mais aparente, desde muito cedo são expulsos de casa. São as maiores vítimas de bullying homofóbico nas escolas e acabam abandonando os estudos. Claro que é mais difícil conseguirem inserção no mercado de trabalho.
Os intersexo – que eram chamados de hermafroditas – são os mais invisibilizados, pois enquanto crianças são submetidas a intervenções cirúrgicas para a escolha de uma identidade sexual, que nem sempre corresponde à sua orientação na fase adulta.
Avanços são alcançados no âmbito do Poder Judiciário. Foi a 15 anos que a grande mudança começou. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul fixou a competência das Varas de Família para julgar as demandas envolvendo as uniões homoafetivas e passou a identifica-las como entidade familiar. Seguindo a trilha de inúmeros julgados, o Supremo Tribunal Federal, em 2011, conferiu às uniões homoafetivas, os mesmos direitos e deveres das uniões estáveis, o que permitiu acesso ao casamento. Resolução do Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2013 proibiu a qualquer autoridade negar o reconhecimento da união estável e o acesso ao casamento direto ou por conversão.
Apesar do preconceito de que são alvo, das perseguições que sofrem, mantem-se omisso o legislador. Recusa-se a cumprir com a sua obrigação: fazer leis. Nada mais do o preconceito disfarçado em proteção à sociedade. Não é por outro motivo que, até hoje, não foi aprovada qualquer lei que criminalize a homofobia ou garanta direitos às uniões homoafetivas.
Talvez o mais surpreendente seja o retrocesso que se tem presenciado. O conservadorismo religioso toma conta do Congresso Nacional e não mede esforços para impor sua crença, como se o país não fosse laico, o que significa nada mais do que o respeito a todas as religiões. Por medo de ser rotulado de homossexual, de não se reeleger, os parlamentares invocam preceitos bíblicos para pregar o ódio e a discriminação.
Diante deste quadro a Ordem dos Advogados do Brasil criou Comissões da Diversidade Sexual em todas as Seccionais e em inúmeras Subseções, bem como uma Comissão no âmbito do Conselho Federal. Um grupo de juristas elaborou o Estatuto da Diversidade Sexual e propostas de emenda constitucionais. O projeto também contou com a colaboração dos movimentos sociais. Tem a estrutura de um microssistema, como deve ser a legislação voltada a segmentos sociais vulneráveis. Estabelece princípios, garante direitos, criminaliza atos discriminatórios e impõe a adoção de políticas públicas.
Diante da enorme repercussão alcançada pela Lei da Ficha Limpa, foi desencadeado um movimento para angariar adesões para apresentar o Estatuto por iniciativa popular. Para isso é necessária a assinatura de cerca de um milhão e meio de cidadãos, uma missão quase impossível.
É a primeira vez que ocorre uma movimentação social pela aprovação de uma lei que assegure direitos a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais.
Mas não é uma proposta que deve contar com a participação somente dos homossexuais. Trata-se de um projeto de cidadania para garantir direitos humanos a todos os cidadãos. É fácil participar: www.estatutodiversidadesexual.com.br
Certamente é o único jeito de driblar a postura omissiva dos legisladores que não poderão alegar que a iniciativa desatende ao desejo do povo.
Não há outra forma de a sociedade reivindicar tratamento igualitário a todos, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Afinal, de nada adianta não ver, não reconhecer, tentar punir e até matar quem só quer ter o direito de ser feliz, seja com quem for, do jeito que quiser.
Publicado em 06/08/2015.
[1] Advogada
Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB