Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: Aborto, ARTIGOS

Aborto: uma realidade que não se quer ver

 

Maria Berenice Dias[1]

 

Direito ou Crime? Evidentemente, uma pergunta que não tem resposta. Tema que não se situa só no campo legal e médico, tendo contornos na ética, na filosofia, bem como na religião e na política, e nunca é enfrentado sem uma carga de emotividade. Porém, é de se atentar numa realidade: o aborto existe, e aos milhares. A clandestinidade de sua prática não permite chegar-se a números, mas se pode afirmar que a cada nascimento corresponde um aborto. Ainda que violando uma lei da natureza, cometendo um pecado, praticando um crime, as mulheres fazem aborto.

O Código Penal, que data de 1940, incrimina o aborto. Sofrendo a sociedade, à época, uma influência decisiva da Igreja, fácil é entender a sua previsão como um delito. As causas de exclusão da antijuridicidade – existência de perigo à vida da mãe e gravidez decorrente de estupro – bem refletem a primazia do conceito de honra dentro de um contexto familiar patriarcal. Por outro lado, a ausência de regulamentação do aborto eugênico talvez deixe à mostra o direcionamento do legislador pátrio de desrespeito à qualidade de vida.

Inquestionável que o abortamento está sendo usado como método contraceptivo, quer por falta de esclarecimento, quer por ausência de recursos para a adoção de práticas preventivas, quer por inexistência de um programa efetivo de planejamento familiar. Por ser uma prática clandestina, tornou-se uma rendosa indústria, resultando impunes os inúmeros casos de morte, lesões e esterilidade. As complicações, que ocorrem sempre entre a camada mais pobre, acabam onerando o serviço previdenciário estatal, sendo atingida faixa da população economicamente ativa, pois a fertilidade feminina da menarca ao climatério coincide com a sua produtividade.

É mister que se repense a postura do Estado diante dessa realidade e se enfrente a questão como de saúde pública. Imperioso que se pare de ver a mulher como agente da função social de produzir indivíduos como força de trabalho, deixando de se fazer o questionamento sobre mais-valia, se a vida da mulher ou do feto.

 

Publicado em 01/09/2010.

 

[1] Advogada

Presidenta da Comissão da Diversidade sexual da OAB

Vice-Presidenta Nacional da IBDFAM

Ex-desembargadora do TJRS

 

 

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