Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Homoafetividade

A União Homoafetiva e a Constituição Federal: Análise dos Aspectos Sócio-Jurídicos

Palestra proferida na VI Conferência dos Advogados do Distrito Federal, promovida pela OAB/DF, em 28.08.08 – Brasília–DF.

 

 

Maria Berenice Dias[1]

 

Este é um dia muito especial para mim, porque ontem recebi a minha carteira de advogada perante a Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul. Assim, até posso dizer que sou a mais nova advogada deste País, ainda que não seja a mais moça! E o fato tem relevo maior por hoje estar falando em um evento da Ordem dos Advogados e sobre o tema me levou à aposentadoria.

Há dez anos, estou proclamando, escrevendo, falando, gritando, sobre a necessidade de se atribuir efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo, as quais chamo de uniões homoafetivas. Mas a escassez de demandas, buscando o reconhecimento de direitos, é algo surpreendente. Não posso acreditar que isso se deva ao fato de inexistir uma legislação específica reconhecendo o direito dos homossexuais.

Não pode ser isso. Afinal de contas, a Constituição Federal é uma das mais progressistas do mundo e tem como norte o respeito à dignidade da pessoa humana, consagrando os princípios da igualdade, liberdade, além de proibir qualquer espécie de discriminação, inclusive em razão de sexo.

Além disso, a chamada Constituição Cidadã trouxe a nova feição da família. Como diz Zeno Veloso, varreu séculos de hipocrisia ao inserir no âmbito da proteção jurídica a família dos dias de hoje. Acabou tornando-se a regra fundamental do Direito das Famílias, como prefiro falar. Assim, no plural.

Primeiro estabeleceu a igualdade entre filhos, pois antes filho tinha rótulo: filho ilegítimo, bastardo, incestuoso, adotivo. Eles não tinham os mesmo direitos dos chamados “filhos legítimos”. A Constituição, em um passe de mágica, acabou com tudo isso. Filho não tem mais adjetivo.

Também a Constituição impôs a igualdade entre o homem e a mulher, o que agora parece tão óbvio. Mas não dá para esquecer que o Código Civil de 1916 – que vigorou até 2003 – dizia que o homem era o cabeça do casal, o chefe da sociedade conjugal. Ora, se o homem era o chefe e a cabeça, a mulher era o resto…

Além disso, a Constituição esgarçou o conceito de família. Concedeu especial proteção à entidade familiar, como base da sociedade, acabando com a idéia sacralizada da família, constituída exclusivamente pelos “sagrados” laço do matrimônio, para “crescei e multiplicai-vos até que a morte os separe”. Além de outorgar proteção ao casamento, também reconheceu como entidade familiar, o que chamou de união estável, e que antes tinha o nome de concubinato e era reconhecida pela jurisprudência como uma sociedade de fato. O constituinte trouxe a união estável para o âmbito do Direito das Famílias, fazendo, no entanto, uma recomendação que Giselda Hironaka disse ser um dos penduricalhos mais inúteis da nossa Constituição, ao preconizar que a lei deve facilitar a conversão da união estável no casamento.

Ora, se vivemos no primado da liberdade – e vivemos – as pessoas podem escolher, casam se quiserem casam ou vivem em união estável. Ainda não há uma lei regulando esta recomendação. Mas, para converter a união estável em casamento certamente é preciso um processo judicial, a realização de uma audiência.  No entanto, casar é grátis e, com certeza, bem mais romântico.

Também a Constituição reconheceu como família o convívio de um dos pais com seus filhos. Com a inclusão no conceito de família das estruturas monoparentais, a idéia de família migrou da genitalidade para a afetividade. Houve uma mudança no conceito de família, o que permite dizer que a Constituição Federal viu e emprestou efeitos jurídicos ao afeto. Afinal, a união estável nada mais é do que um relacionamento que tem por fundamento um vínculo afetivo.

O conceito constitucional de família é de inclusão, de abrangência. A enumeração não é taxativa, não se tratando de numerus clausus. Em primeiro lugar porque a Constituição usa a expressão “também” é um advérbio de inclusão. De qualquer modo, as famílias não são mais exclusivamente formadas por homens e mulheres. Não. Vivemos em uma época onde todos – gostando ou não, querendo ver ou não – não têm como deixar de reconhecer a existência de vínculos afetivos formados por pessoas do mesmo sexo.

O fato de a Constituição Federal ter emprestado especial proteção à união estável entre um homem e uma mulher não quer dizer que não admite união estável entre pessoas do mesmo sexo. Simplesmente, com relação a essas não recomenda aquela inutilidade de ser facilitada sua transformação em casamento.

Não há como esquecer que o Brasil, desde 1992, é signatário do Pacto dos Direitos Humanos Civis e Políticos da ONU. Este Tratado, em dois artigos proíbe expressamente a discriminação por motivo de sexo. E, a própria Comissão dos Direitos Humanos da ONU, no ano de 1994, explicitou que as referências a sexo significam também orientação sexual.

Assim, a Constituição nada veta.

Mas existe o silêncio do legislador infraconstitucional, que se escuda na aparente referência constitucional à diversidade de sexo para não aprovar qualquer projeto que reconheça direitos aos homossexuais. Este aparente respeito à regra constitucional esconde o medo do parlamentar de desagradar o seu eleitorado. Simplesmente não quer correr o risco de comprometer sua reeleição. Além disso, tem medo de ser rotulado de homossexual, que parece ser uma praga contagiosa. Qualquer pessoa que faça alguma referência, mostre um mínimo de simpatia aos homossexuais, ou apóie algum movimento para o reconhecimento de seus direitos, imediatamente é chamado de gay. E o nosso legislador, por uma postura absolutamente covarde, se nega a apreciar, a aprovar qualquer legislação que atenda minorias, porque ele é eleito pelo voto da maioria. E quando as minorias são alvos de discriminação e preconceito, como o são os homossexuais, melhor não regulamentar, melhor não aprovar nada.

Basta lembrar o projeto de lei da então deputada Marta Suplicy, dos idos de 1995, que admite singelamente a possibilidade de as partes firmarem contrato de parceria civil a ser devidamente registrado. Isso não tem mais nenhum significado, principalmente depois se ser admitido que na união estável as questões patrimoniais sejam regradas através de contrato. Em face dessa possibilidade não há advogado que não faça contrato de união de pessoas do mesmo sexo. Principalmente quando o casal tem dinheiro.  Até marcam horário no final da tarde, para os outros clientes não verem, mas fazem os contratos porque rendem bons honorários.

Há também o projeto de lei, 122, que visa criminalizar a homofobia. De tão singelo é até difícil sustentar a indispensabilidade de sua aprovação. Simplesmente diz: é crime discriminar por orientação sexual.  Ora, é crime discriminar o negro, que também é alvo de crimes de ódio. Mas para eles há a Lei Afonso Arinos. A dificuldade na aprovação decorre do fato de o nosso Congresso Nacional contar com uma bancada fundamentalista de natureza religiosa cada vez maior – aumento para o qual não encontro qualquer justificativa. As igrejas evangélicas, a Assembléia de Deus, se juntam com os católicos, os protestantes e com outras bancadas conservadoras, não havendo a mínima chance de ser aprovada a lei. A justificativa é no mínimo bizarra: dizem simplesmente que, não poderiam nos cultos, falar mal dos homossexuais. E este é o fundamento para esse projeto de lei não ser aprovado.

Mas quando não há lei, qual é a saída? A quem recorrer? Aonde vão bater quem quer o reconhecimento de um direito que não tem suporte legal? Vão bater às portas do Judiciário. Só que o juiz não pode, pela omissão do legislador, achar que a falta de lei significa falta de direito.

O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil diz: na falta de lei o juiz não pode deixar de julgar, devendo aplicar a analogia, os princípios gerais de direito, os costumes. Atentando a este comando legal, é hipocrisia dizer que a união de pessoas do mesmo sexo não é uma família. Assim, não há como fazer analogia com a sociedade de fato e enxergar exclusivamente o caráter patrimonial da união e não é vínculo de afeto que une o par. Ao depois, identificada uma sociedade de fato, se está fora do âmbito do Direito das Famílias e do direito sucessório. Isso porque sócios não são herdeiros. Assim, a herança é atribuída a parentes, ficando o parceiro sobrevivente sem nada. Com isso se alimenta o preconceito além de gerar o enriquecimento sem causa de quem, muitas vezes, repudiava o falecido em face de sua homossexualidade.

Mas alguns direitos começaram a ser reconhecidos no âmbito do Judiciário. Tudo iniciou no ano de 1999, quando o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, deslocou a competência das ações envolvendo questões de homossexuais das varas cíveis para as varas de família. Este foi o primeiro passo significativo. No ano de 2001, o mesmo Tribunal reconheceu a união estável homossexual como entidade familiar, deferindo direitos sucessórios ao parceiro sobrevivente.  O avanço começou no Rio Grande do Sul, mas já se espalhou no Brasil, pois vários estados vem reconhecendo toda a sorte de direitos.

No ano de 2006, também é gaúcha a decisão que deferiu a adoção de uma criança ao par homossexual. Em seguida foi a vez de São Paulo, que deu a Teodora em adoção a dois pais. Uma menina que jamais seria adotada, porque era negra e já tinha cinco anos. Nossos abrigos estão cheios de crianças que ninguém quer. O Brasil tem oitenta mil crianças abrigadas esperando adoção.

De uma maneira muito hipócrita, ao ser vedado aos homossexuais o direito de constituir família, é negado o direito que todas as pessoas têm de pertencer a uma família. Para driblar esta injustificável proibição, o que faziam os homossexuais? Somente um se candidatava à adoção não revelando sua orientação sexual, uma vez que a lei permite adoção por somente uma pessoa. Quem aplicava os testes, procedia às avaliações, não perguntava a orientação sexual do candidato. Com isso não se avaliava o parceiro que também tinha optado pela adoção. A criança era entregue para um, mas passava a ter dois pais ou duas mães.

Só que esta situação não gerava qualquer vínculo jurídico da criança com quem passou a ser seu pai ou sua mãe. Não havia nenhuma obrigação com relação ao filho que, via de conseqüência, não tinha nenhum direito frente a quem era seu pai ou sua mãe. A criança ficava desassistida diante um dos seus genitores. Foi isso que a Justiça viu, ou seja, que estava deixando de atender ao melhor interesse da criança.

Os avanços vêm sendo feitos pela jurisprudência. Os Tribunais Regionais Federais da 1ª, 2ª, 4ª e 5ª Região e o próprio STJ já reconhecem direito a pensão junto ao INSS e órgãos previdenciários. Por determinação judicial, o INSS baixou a Resolução 25, de 2000, pois as ações civis públicas, promovidas pelo Ministério Público, têm eficácia erga omnes.

Os Tribunais superiores ainda nada julgaram, mas alguns ministros já sinalizam sua posição. O Min. Marco Aurélio, enquanto presidente do STF, no ano de 2003, ao negar recurso do INSS fez um verdadeiro libelo contra a homofobia. O Min. Celso de Mello, em 2006, ao extinguir a ação direta de inconstitucionalidade sinalizou que o cainho era a argüição de descumprimento de preceito fundamental, que foi proposta em 2007, pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Fora disso, o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, no ano de 2004, enquanto presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ao proclamar a inelegibilidade da parceira homossexual de uma candidata do Pará, às claras que admitiu a existência de união de natureza familiar, única justificativa para a inexigibildiade.

O STJ tem duas decisões reconhecendo que a competência para apreciar as ações envolvendo uniões homoafetivas não é das varas da família, mas das varas cíveis. Só que essas decisões não vingaram. Independentemente do que foi decidido, as ações continuam tramitando nas varas de família e os recursos julgados pelas câmaras especializadas em Direito de Família. Cabe lembrar que no Rio Grande do Sul e agora no Paraná, existem câmaras especializadas de família. Inclusive, por sugestão do IBDFAM, o Conselho Nacional de Justiça, já fez uma recomendação para que todos os Tribunais adotem esta prática.

Mas não dá mais para negar reconhecimento às uniões homoafetivas sob a alegação de que ausência de previsão legal. A Lei 11.340/2006, de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, a chamada Lei Maria da Penha, define família como a relação íntima de afeto. E, em duas oportunidades, diz que está ao abrigo de proteção da lei a família, independentemente de orientação sexual. Esta é a única referência legal no Brasil à orientação sexual. Este novo conceito tem duplo significado. Primeiro define o que é família, já que o Código Civil nada diz. De outro lado, diz que a família independe da orientação sexual de seus membros.

Este novo conceito de família foi vincado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Família, que elaborou o Estatuto das Famílias, para sinalizar que família é um conceito plural e lá está prevista a união homossexual como uma entidade familiar.

E, enquanto não temos leis explicitamente assegurando direitos, a responsabilidade cabe à Justiça. Foi a jurisprudência que trouxe para o âmbito do Direito de Família o concubinato, que durante setenta anos foi visto como uma sociedade de fato. Foi a construção deste conceito que levou a Constituição Federal a reconhecer a união estável como entidade familiar.

Uma ressalva: quando falo em jurisprudência, eu não estou falando em juiz, desembargador, ministro. Quem faz a jurisprudência são os advogados, somos nós. É nossa a responsabilidade de levar as querelas de quem nos procura à Justiça. Precisamos ser os porta-vozes de quem não tem voz, de quem não tem vez. Só que para isso precisamos ter coragem. Coragem de enfrentar a realidade da vida. Não podemos esquecer do compromisso, do sonho que um dia nos levou a ingressar em uma faculdade de direito.

Preciso confessar que eu, depois de 35 anos na magistratura, fiquei absolutamente surpresa com o acanhado número de ações que tramitam na justiça. Fiz uma pesquisa e constatei que no Brasil não existia nenhum escritório de advocacia especializado em Direito Homoafetivo. Por isso me senti com o dever de abrir o primeiro. Ontem recebi a carteira e hoje já mandei colocar uma placa na porta. Está lá: Direito Homoafetivo. Muitos advogados promovem ações, mas falta é a capacitação para se trabalhar com este novo ramo do Direito, cujos princípios precisam ser ainda sistematizados.

Imperiosa a elaboração de Estatuto da Diversidade Sexual. Como há o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, indispensável um estatuto que atenda a este segmento ainda alvo da vulnerabilidade em face do preconceito.

Também é indispensável que se instale em todas as secções da OAB, bem como na OAB Nacional, comissões da diversidade sexual. Aliás, ontem, ao receber a carteira com uma mão, com a outra entreguei o requerimento de instalação desta comissão junto à OAB do Rio Grande do Sul. Até gostaria de dizer, de público, que falei com a Estefânia Viveiros, presidente da Ordem do DF, e ela ficou muito entusiasmada e abraçou a idéia de também de aqui se ter uma comissão.

É necessário que nós advogados nos capacitemos para fazer um derrame de ações perante a Justiça. Com isso se vai consolidando a jurisprudência, e o legislador não terá outra saída senão aprovar leis que assegurem direitos aos homossexuais. Está na hora de incluir no âmbito jurídico significativa parcela de cidadãos que pagam impostos, que têm direito à felicidade, que não escolheram ser excluídos.

Ninguém que é homossexual gostaria de ser homossexual, porque sabe que vai ser marginalizado. De todos os excluídos sociais, são o alvo de maior preconceito. Por isso, merecem a nossa atenção muito especial. O negro se é chamado de negro na rua chega em casa chorando e o pai e a mãe dizem: “não meu filho, tenha orgulho de ser um afro-descendente”. O homossexual não. O homossexual se é ridicularizado na rua, ao chegar em casa ouve um solene: bem feito!

O fato é que a sociedade não tolera a diferença. Conforta-se na mesmice do igual.

Por isso somos nós que temos que retirar essa realidade do armário.

Claro que o caminho da via judicial não é fácil. É demorado, é cheio de percalços. Mas é o único caminho que temos. No entanto, há uma grande vantagem, é um caminho que só depende de nós.

Por isso gostaria de conclamar vocês a arrancarem a venda dos olhos da Justiça para ver a justiça como ela é.

Obrigada.

 

 

Publicado em 30/08/2008.

 

[1] Advogada especializada em direito das famílias, sucessões e direito homoafetivo

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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