Maria Berenice Dias[1]
Sumário: 1. Definição; 2. Impedimentos; 3. Direitos; 4. Renascimento do concubinato; 5. Direitos sucessórios e 6. Uniões homoafetivas.
1. Definição
Não se pode deixar de reconhecer como pertinente e coerente haver a norma codificada copiado a definição da união estável já consolidada na legislação infraconstitucional. Inegavelmente, qualquer tentativa de impor parâmetros objetivos para regular relações nascidas do afeto, acabaria deixando à margem do manto legal um sem-número de situações que constituem entidades familiares dignas de tutela.
De todo descabido estabelecer requisito temporal para sua configuração, delimitação nunca posta pela jurisprudência, a quem se deve a construção dessa figura jurídica. Igualmente, o texto constitucional, ao emprestar juridicidade ao instituto, não lhe fixou prazo.
Certo que a Lei nº 8.971/94 [1] – a primeira a regulamentar a união estável – estipulou o prazo de 5 anos ou a existência de prole para o seu reconhecimento. Porém, tais foram as críticas que, antes de haver passado ano e meio, foi promulgada a Lei nº 9.278/96, [2] afastando a exigência de tempo mínimo, como conditio sine qua non para sua tipificação.
2. Impedimentos
Nada justifica a tentativa de prever impedimentos à configuração da união estável. A remissão feita no § Iº do art. 1723 ao art. 1.521, invocando os impedimentos dirimentes para o casamento, visa a restringir a constituição da união estável, nas mesmas hipóteses em que não se admite o casamento. Olvida-se o legislador, no entanto, que é possível impedir o casamento, pois sua celebração depende da chancela do Estado. O ato é levado a efeito por um agente estatal, sendo inscrito em registros cartorários públicos que dispõem de eficácia constitutiva. Assim, pode a lei impor limitações, restrições e impedimentos. Inadimplidas as exigências legais, simplesmente o casamento não acontece.
A união estável, porém, não dispõe de qualquer condicionante. Nasce do vínculo afetivo e se tem por constituída a partir do momento em que a relação se torna ostensiva, passando a ser reconhecida e aceita socialmente. Não há qualquer interferência estatal para sua formação, sendo inócuo tentar impor restrições ou impedimentos. Tanto é assim que as provas da existência da união estável são circunstanciais, dependem de testemunhas que saibam do relacionamento ou de documentos que tragam indícios de sua vigência.
Em se tratando de convivência pública, contínua e duradoura impositivo o reconhecimento de sua existência. O simples desatendimento a alguma das vedações impeditivas do casamento, não subtrai da relação o objetivo de constituição de família. Por exemplo, o relacionamento do homicida com o cônjuge sobrevivente da vítima, que atende a todos as exigência de longevidade, publicidade e continuidade, não se pode ter por inexistente. A tentativa de impedir seu reconhecimento dispõe de nítido caráter punitivo. Nada mais do que mera condenação à invisibilidade, o que tem sempre resultados catastróficos.
Inócua a remissão feita pelo § 2º do art. 1723 ao art. 1.523, tão-só para dizer que não incidem na união estável os impedimentos impedientes para o casamento. São limitações de caráter temporário, que não afetam a existência, a validade ou a eficácia do casamento. Como para estabelecer a união estável inexiste qualquer formalidade, a remissão é absolutamente ilógica.
A exceção aberta, autorizando o reconhecimento da união estável na hipótese de ser a pessoa casada, mas estar separada de fato ou judicialmente, trata-se de verdadeira manobra legal para, a contrario sensu, excluir da figura jurídica da união estável o que a doutrina chama de concubinato adulterino, ou impuro, ou concubinagem. Tanto é assim que acabou o Código Civil por ressuscitar o concubinato no seu art. 1.727.
3. Direitos
Inserida a união estável no Livro do Direito de Família, despicienda a expressa indicação da competência das Varas de Família para apreciar as demandas envolvendo ditos relacionamentos. Não mais subsiste a preocupação que levou a Lei 9.278/96 a dizer em seu art. 9º: Toda a matéria relativa à união estável é de competência do Juízo da Vara de Família, assegurado o segredo de justiça.
Não deve causar preocupação o silêncio, no título que regula a união estável, quanto aos direitos reconhecidos aos parceiros. O fato de não haver qualquer menção à obrigação alimentar, não pode dar ensejo a que se pense que houve a exclusão de dito direito. A referência do art. 1.694 – que fala em conviventes [3] – assegurando o direito a alimentos, basta para suprir a necessidade de uma melhor explicitação. Ao depois, a imposição do dever de assistência (art. 1724) garante o reconhecimento da permanência da obrigação alimentar entre os companheiros.
Também não é estabelecida a presunção de colaboração mútua na aquisição dos bens. Tal, no entanto, não pode afastar o estado condominial e conseqüente partição igualitária do patrimônio. Para isso é suficiente a determinação de aplicação supletiva do regime da comunhão parcial dos bens feita no art. 1.725.
4. Renascimento do concubinato
A mais severa crítica que merece ser feita à regulamentação da união estável é a tentativa de ressuscitar a figura do concubinato, que, em boa hora, havia sido sepultada, quando do advento da nova ordem constitucional.
Sob a égide do Código Civil pretério, que negava quaisquer direitos às uniões extramatrimoniais, a Justiça em face da dificuldade de conviver com o enriquecimento injustificado, passou a emprestar efeitos jurídicos a ditos relacionamentos, sob o nome de concubinato. Para contornar as vedações legais, a jurisprudência as chamava de sociedades de fatos, e lhes remetia ao âmbito do Direito Obrigacional.
O que no passado era chamado de concubinato, e se situava fora do Direito de Família, com a chancela constitucional, foi albergado nesse ramo do Direito e com o nome de união estável. Como a Constituição Federal alargou o conceito de família, a palavra concubinato foi substituída pela expressão união estável.
No entanto, ao invés de cair do dessusso, o substantivo concubinato recebeu alguns adjetivos: adulterino, impuro, de má fé, passando a significar as relações paralelas, simutâneas. Trata-se de vínculos de convivência que sempre existiram no seio social, mantidos historicamente pelos homens, que conseguem entreter relacionamentos concomitantes. A aparente rejeição a ditas uniões ensenjou o surgiemtno dessa nova nomenclatura, com o fito de negar-lhes a qualificação de entidade familiar, afastar a possibilidade de reconhecimento e eliminar quaisquer direitos.
A palavra concubinato, agregada a adjetivos de conteúdo pejurativo, continuou fora do Direito de Família. No entato, para que ditos vínculos múltiplos fossem reconhecidos no Direito das Obrigações e tratados como sociedade de fato, foi acrescentada mais uma qualificação: boa- fé, a significar a ignorância da duplicidade relacional. Mas só isso não bastava, era necessário mais um adjetivo: putativo, aa significar firme convicção da exclusividade da relação. Assim, alegando a mulher desconhecer a infidelidade do parceiro, o máximo que se passou a deferir foi a divisão do patrimônio amealhado, mediante a prova da participação na constituição dos lucros, tal qual uma sociedade comercial.
Agora vem o Código Civil, por meio do art. 1.727 chamar de concubinato o que a doutrina e a jurisprudência identificam pela expressão composta: concubinato aduterino putativo de boa-fé. Pela atual definição, conbubinato são relações eventuais entre pessoas impedidas de casar. Não são reconhecidas como união estável. Mas, na verdade, somente as chamadas relações adulterinas foram defenestradas. Como é permitido o reconhecimento da união entre pessoas separadas de fato ou separadas judicialmente, e em ambas as hipóteses há o impedimento de casar, não se vê o alcance que a lei quis dar ao que chamou de concubinato. Pelo jeito houve tão-só uma tentativa de referendar a não inclusão de tais entidades espúrias no conceito de entidade familiar.
Ademais, criar uma figura e nada dizer sobre ela revela postura meramente punitiva. Se um do par deixa de cumprir o dever de fidelidade e mantém duplo vínculo familiar, afronta o consagrado sistema da monogamia. Logo, é injustificável que quem assim aja seja beneficiado. Ao vetar a lei possibilidade de reconhecimento, está suprimindo os efeitos patrimoniais do vínculo que, com ou sem respaldo social, existiu. Isso só beneficiará o parceiro adúltero, que não irá dividir o patrimônio amealhado com a colaboração mútua, o que é causa de enriquecimento ilícito.
Ainda que alijadas do Direito de Família, tais relações não foram alocadas em nenhum ramo do direito. No entanto, para impedir eventual enriquecimento sem causa, mister que permaneçam, no mínimo, no âmbito obrigacional, como sociedades de fato.
Assim se estará, ao menos, vendo uma meia verdade, ainda que fazendo uma injustiça por inteiro.
5. Direitos sucessórios
Com relação aos direitos sucessórios, chama a atenção a deficiente técnica legislativa, ao referir o art. 1.790 a companheira ou companheiro. Despicienda a especificação do gênero, pois, o uso do substantivo companheiros no plural, indiscutivelmente diz tanto ao homem quanto à mulher.
Em sede de direitos sucessórios na união estável é onde o Código Civil mais escancaradamente acabou violando o cânone maior da Constituição Federal que impôs o reinado da igualdade e guindou a união estável à mesma situação que o casamento. O tratamento desigual dado ao cônjuge e ao parceiro não se justifica, em vista do reconhecimento da união estável como entidade familiar.
O legislador afrontou a norma constitucional. O tratamento diferenciado inegavelmente desobedeceu o princípio da igualdade que tem assento constitucional, sede que consagrou a união estável como entidade familiar e a igualou ao matrimônio, sem distinções de ordem patrimonial. Não prospera a justificativa do Deputado Ricardo Fiúza, relator do Projeto do Código Civil, para dar prevalência à relação matrimonial sobre o relacionamento estável. Afirma que a união estável é instituição-meio, enquanto o casamento seria instituição-fim. Essa predileção não existe.
Produziu a lei civil verdadeiro retrocesso aos direitos dos conviventes, direitos que já estavam consolidados na legislação infraconstitucional. Descabido não deferir aos companheiros direitos iguais aos assegurados aos cônjuges. Ao depois, a restrição em sede de direito sucessório aos bens adquiridos na vigência da união estável não corresponde ao regime de bens da comunhão parcial, que é assegurado à união estável no art. 1.525.
A promoção do cônjuge à condição de herdeiro necessário é uma novidade. Porém, indevido excluir da parceria estável a sucessão necessária, condição a que o cônjuge foi guindado pelo art. 1.845. De todo descabida, por conseqüência, a disparidade de tratamento que resultou em severas seqüelas, dando margens a gritantes injustiças.
Quanto ao direito de concorrência o tratamento diferenciado também não se justifica. O art. 1.829 estabelece que o cônjuge concorre em iguais proporções com os descendentes, sejam filhos comuns ou filhos só do de cujus. Mas o inc. I do art. 1.790 aos companheiros somente concede o mesmo direito se concorrerem com os filhos comuns. Limita o inc. II do art. 1.790 a concorrência à metade do quinhão, se os herdeiros forem filhos só do autor da herança, distinção que não é feita quanto ao vínculo matrimonial. Como não integra o companheiro a ordem de vocação hereditária, concorre com os herdeiros sucessíveis, ou seja os colaterais até o quarto grau. Nessa hipótese, percebe somente um terço da herança, ficando a maior parte (2/3) para sobrinhos netos ou primos do companheiro falecido. Tal não ocorre quando há casamento, pois o cônjuge antecede os colaterais na ordem de vocação hereditária (art. 1829, inc. III).
A disparidade prossegue no que diz com o direito real de habitação deferido somente ao cônjuge (art. 1.831). Também é subtraída do parceiro sobrevivente a garantia da quarta parte da herança, quota mínima assegurada ao cônjuge sobrevivo, se concorrer com os filhos comuns (art. 1.832).
Ambas as leis regulamentadoras da união estável deferem direitos outros, não contemplados no Código. A Lei nº 8.971/94 garantiu o direito de usufruto da metade ou da quarta parte da herança, a depender da existência de filhos do de cujus. Já a Lei nº 9.278/96 assegura o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família.
Como o novel estatuto não revogou expressamente esses diplomas legais, e não disciplina exaustivamente a matéria, pois não prevê o direito de habitação e o direito de usufruto, mister reconhecer que não estão derrogados esses direitos deferidos na legislação pretérita. Outra não pode ser a conclusão em face do que dispõe os §§ 1º e 2º do art. 2º da LICC.
No entanto, há sério risco de a jurisprudência deixar de reconhecer a permanência de ditos direitos na união estável bem como afastar todo e qualquer tratamento desiguaritário ente casamento e união estável. Seria uma severa limitação às relações extramatrimoniais, além uma injustificável afronta aos princípios constitucionais. Devem as diferenciações ser afastadas do sistema jurídico. Mas, até que seja corrigido tal equívoco, pela reformulação da lei, cabe ao juiz simplesmente deixar de aplicar as normas discriminatórias, reconhecendo a inconstitucionalidade das mesmas. Esta é a única forma de evitar que o equívoco legal traga prejuízos enormes às uniões que merecem a proteção do Estado.
6. Uniões homoafetivas
A realidade social aceitou as relações afetivas constituídas fora do casamento. Outra não foi a saída da moderna doutrina e da mais vanguardista jurisprudência senão buscar um novo conceito de família.
Acabou por se definir família pela só presença de um vínculo afetivo.
Mudaram os paradigmas da família. O casamento deixou de ser seu traço identificador. A entidade familiar não mais tem por finalidade precípua e exclusiva a função reprodutiva, quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos, quer pela evolução da engenharia genética que permite a fecundação manipulada.
Assim, imperativo incluir no Direito de Família, como espécie do gênero união estável, as relações homossexuais, chamadas de uniões homoafetivas, e que, tanto quanto as uniões heteroafetivas têm por razão de existir o afeto entre os conviventes. Hoje a discriminação não é mais aceitável. Traduz puro preconceito de ordem sexual, banido expressamente pelo inciso IV do art. 3o da Constituição da República.
Não se justifica a omissão do legislador, ao consolidar as normas de direito privado. Deixar à margem da lei os vínculos afetivos que não se definem pela diferença do sexo do par, embora haja convivência duradoura, pública e contínua, com objetivo de constituição de família, é uma postura discriminatória e inaceitável.
Mais uma vez, cabe ao Poder Judiciário, invocando o art. 4º da Lei de Introdução do Código Civil, aplicar às uniões homoafetivas a legislação que regulamenta o casamento e a união estável.
[1] Art. 1° da Lei nº 8.971/94: A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei 5.478, de 25 de julho de 1968 (Lei de Alimentos).
[2] Art. 1º da Lei 9.278/96: É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituir família.
[3] Cabe referir que os arts. 1724 e 1790 falam em “companheiros”.
Publicado em 27/03/2009.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM