Maria Berenice Dias[1]
O direito à sexualidadade
A Constituição da República já no seu preâmbulo assegura a todos o exercício de direitos sociais e individuais em uma sociedade sem preconceitos. Do mesmo modo, assume o compromisso de promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Assim, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento de um Estado Democrático de Direito (art. 1º, III) e assegurar a o direito à igualdade (art. 5º, I) e à liberdade (art. 5º, II), veda qualquer espécie de discriminação, inclusive por orientação sexual ou identidade de gênero. O só fato de estas expressões não constarem do texto constitucional, não exclui das pessoas LGBTI o direito ao livre exercício da sexualidade.
O direito à livre orientação sexual e identidade de gênero está albergado em um punhado de princípios constitucionais. Desde o mais significativo de todos, que é o respeito à dignidade da pessoa humana. E também na garantia dos direitos de personalidade, liberdade, igualdade, intimidade, vida privada e liberdade de expressão gozam de proteção constitucional.
O impedimento de tratamento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional. Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos são reconhecidos como emendas constitucionais. E o tratamento isonômico é corolário de todo o regramento que consagra o primado dos direitos humanos.
A sexualidade abrange a dignidade e integra a própria condição humana, sendo um direito fundamental que acompanha o cidadão desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível. Ninguém pode realizar-se como ser humano se não tiver assegurado respeito ao exercício da sexualidade, conceito que alberga a liberdade à livre orientação sexual e identidade de gênero. O direito de tratamento igualitário exige respeito ao livre exercício da sexualidade, pois sem liberdade sexual o indivíduo não se realiza.
O direito à homoafetividade
A Constituição da República outorga especial proteção não só ao indivíduo, mas também à família (art. 226). A inserção do conceito de entidade familiar no sistema jurídico ensejou o alargamento do próprio conceito de família.
O centro de gravidade das relações de família situa-se na mútua assistência afetiva, elemento essencial das relações interpessoais, ao qual o Direito não pode ficar indiferente. É o afeto que aproxima as pessoas, dando origem a relacionamentos que geram consequências jurídicas. Em nome do respeito à diferença, foi construído um conceito plural de família.
Para a configuração de uma entidade familiar, não mais é exigido, como elemento constitutivo: a existência de um casal heterossexual, a prática sexual – chamada pela feia expressão “débito conjugal” – e nem a capacidade reprodutiva. A evolução científica, principalmente na área da biociência, acabou influindo no próprio comportamento das pessoas e se refletiu na estrutura familiar.
Assim, é indispensável ter uma visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de entidade familiar os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito das Famílias consegue assegurar. Por isso é necessário reconhecer que, independente da identidade sexual do par, as união de afeto merecem ser identificadas como família, gerando direitos e impondo obrigações aos seus integrantes.
A referência à união estável entre um homem e uma mulher (CR, art. 226, § 3º) não significa que somente esta convivência é reconhecida como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-la em casamento. É meramente exemplificativo o enunciado constitucional, Em nenhum momento está dito não existir entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Reconhecido o afeto como o elemento estruturante do conceito de família, não se justifica deixar ao desabrigo as uniões homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é a forma mais perversa de excluir direitos.
A proibição da discriminação em razão do sexo veda discriminação à homoafetividade. A identificação da orientação sexual está condicionada ao sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe, decisão que não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída, por óbvio, a orientação sexual e a identidade de gênero.
Atendidos os requisitos legais para a configuração de uma união estável – publicidade, ostensividade e continuidade – é necessário conferi direitos e impor obrigações, a todos que assim vivem. Desimporta o sexo do par, se igual ou diferente, para que se empreste efeitos jurídicos aos vínculos afetivos no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões. São relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, têm origem em um elo de afetividade.
Deste modo, são alvo de proteção os relacionamentos afetivos entre homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Não há como exigir a diferenciação de sexos para o casal merecer a tutela do Estado.
O estigma do preconceito não pode ensejar que um fato social não se sujeite a efeitos jurídicos.
A omissão do legislador
É do Poder Legislativo a obrigação de resguardar o direito de todos os cidadãos, principalmente, de quem se encontra em situação de vulnerabilidade. E, dentre todos os excluídos, homossexuais, travestis, transexuais e intersexuais são as maiores vítimas.
A omissão covarde do legislador infraconstitucional de assegurar-lhes direitos e reconhecer seus relacionamentos, ao invés de sinalizar neutralidade, encobre enorme preconceito. O receio de ser rotulado de homossexual, o medo de desagradar seu eleitorado e comprometer sua reeleição inibe a aprovação de qualquer norma que consagre direitos a uma parcela minoritária da população que é alvo de perversa discriminação.
No entanto, o conservadorismo religioso vem tomando conta do Congresso Nacional. As igrejas fundamentalistas – que se multiplicam de maneira assustadora – não medem esforços para impor suas crenças, como se o país não fosse laico.
O protagonismo do Judiciário
As uniões homoafetivas são relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, gerando o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial. E a falta de lei não significa ausência de direito.
A postura silenciosa do legislador, no entanto, não inibiu a Justiça. Assim, ao longo deste século vêm se consolidando conquistas no âmbito do Poder Judiciário.
O florescer dos direitos humanos, a laicização do Estado e principalmente a coragem dos juízes forjaram a construção de um novo paradigma, que se consolidou a partir da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal que, em 2011, reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar, com todos os direitos e iguais obrigações das uniões estáveis.
Como recomenda a Constituição que seja facilitada a conversão da união estável em casamento, não demorou para ser garantido acesso ao casamento, mediante habilitação direta.
Até que, em 2013, o Conselho Nacional da Justiça impediu que seja negado acesso ao casamento homoafetivo. Assim, o Brasil tornou-se o primeiro país do mundo a admitir o chamado “casamento gay” por decisão judicial e não por lei.
Há que conhecer a coragem dos advogados e juízes deste país que, empunhando a Constituição da República, ultrapassaram os tabus e romperam o preconceito que historicamente persegue as entidades familiares homoafetivas.
Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação. O Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz justiça. O Estado não pode descumprir sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade.
Já que a Constituição consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, é indispensável reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, direito social de escolha e direito humano à felicidade.
Publicado em 20/08/2019.
[1] Advogada especializada em direito homoafetivo, famílias e sucessões
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
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