Ethics of affection
La ética del afecto
Maria Berenice Dias[1]
Sumário: 1. Um olhar no tempo; 2. Família e casamento; 3. Novas estruturas familiares; 4. Homoafetividade; 5. Avanços jurisprudenciais; 6. Lei Maria da Penha: a legalização das uniões homoafetivas; 7. Homoparentalidade; 8. Estatuto da Diversidade Sexual; 9. Finalmente…
Summary: To somewhat reduce existing prejudice, instead of homosexuality it is better to speak of homoaffectivity, term that better highlights a relationship between to same sex individuals on the basis on affection rather than sex.
Resumo: Para amenizar um pouco o preconceito, ao invés de homossexualidade melhor mesmo é falar em homoafetividade, expressão que melhor ressalta a natureza afetiva do que sexual da união entre pessoas do mesmo sexo.
A origem do repúdio ao amor entre iguais é de ordem religiosa. O exercício da sexualidade sempre foi aceito exclusivamente para fins procriativos. Em nome da preservação da família, é execrado tudo o que se afasta do modelo: casamento, sexo e procriação. As uniões homoafetivas, por desatenderem ao designo divino, sempre foram consideradas uma perversão e até hoje permanecem alijadas do sistema jurídico.
É enorme a dificuldade em se aprovar uma legislação que assegure aos homossexuais o direito de constituírem família, de terem filhos. Reconhecer que a diferença é o fiel da balança da igualdade é a única forma de construir um mundo melhor e transformar em realidade o sonho que embala a todos: a tão almejada e merecida felicidade!
Summary: To somewhat reduce existing prejudice, instead of homosexuality it is better to speak of homoaffectivity, term that better highlights a relationship between to same sex individuals on the basis on affection rather than sex. Repudiation of love between same sex individuals comes from religion, where sex has been only accepted for reproductive purposes. In the name of family preservation, anything that departs from the traditional model of marriage, sex and reproduction is rejected. For not being in line with divine designation, homoaffective relationships have been considered a perversion and to this day remain outside of the legal system.
It has been extremely difficult to approve legislation that provides homosexual individuals the right to build a family, to have children. Accepting that diversity is the proper measure for the scale of equality is the only way to build a better world and make come true a dream that everyone has: the highly sought after and deserved happiness!
Resumen: Para suavizar un poco el prejuicio, en lugar de la homosexualidad es aún mejor hablar en homoafetividade, expresión que mejor pone de relieve la naturaleza afectiva que sexual de la unión entre personas del mismo sexo.
El origen de la repudiación de amor entre iguales es religiosa. El ejercicio de la sexualidad siempre ha sido aceptado únicamente para propósitos procriativos. En nombre de la preservación de la familia, es condenado todo lo que se aleja del modelo: matrimonio, sexo y procreación. Las uniones homoafectivas, por desatenderen los planes divinos, siempre han sido consideradas como una perversión y aún hoy permanecen fuera del sistema legal.
Es enorme la dificultad en la aprobación de legislación para garantizar a los homosexuales el derecho a constituir una familia, tener hijos. Reconocer que la diferencia es el fiel de la escala de la igualdad es la única manera de construir un mundo mejor y transformar en realidad el sueño de todos: la ansiada y merecida felicidad!
Palavras chaves: família, casamento, homoafetividade, homoparentalidade.
Keywords: family, marriage, homoaffectivity; homoparenting
Palabras clave: família, matrimonio, homoafectividad, homoparentalidad.
1. Um olhar no tempo
A homossexualidade sempre existiu. É tão antiga quanto a própria humanidade. Na Idade Antiga era não só aceita, mas enaltecida e até glorificada.
Tanto o Estado como todas as religiões, credos e crenças, sempre tentaram amarrar e eternizar os vínculos afetivos, ao menos os heterossexuais. Para isso foi criado o casamento, uma instituição, um sacramento com a finalidade de obrigar o casal a se multiplicar até a morte.
Apesar de todos os dogmas, princípios e regras, que buscam assegurar a primazia dos direitos humanos, a sociedade, em nome da moral e dos bons costumes, impõe rígidos padrões de comportamento. Com seu perfil nitidamente conservador, cultua valores absolutamente estigmatizantes, insistindo em repetir os modelos postos.
É no âmbito das relações familiares onde mais se evidencia a tendência de formatar os vínculos afetivos segundo os valores culturais dominantes em cada época. Tal postura gera um sistema de exclusões baseado, muitas vezes, em meros preconceitos. Tudo o que se situa fora do estereótipo acaba sendo rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade, por não se encaixar nos padrões aceitos pela maioria. Essa visão polarizada é extremamente limitante.
Não se pode esquecer o que a sociedade fez com o negro: em face de sua cor, o tornou escravo. Também as mulheres foram – e ainda são – alvo de discriminações. Só em 1932 adquiriram a cidadania e até 1962, ao casar, perdiam a plena capacidade. O mesmo ocorreu com os filhos que, antes de 1988, tinham direitos limitados, sendo alvo de expressões ultrajantes pela singela circunstância de haverem sido concebidos fora de uma família constituída pelo casamento: ilegítimos, espúrios, bastardos etc.
Sempre houve a tentativa de engessar o exercício da sexualidade ao casamento. Sua mantença tinha acentuada finalidade patrimonial: permitir a identidade dos elos de consanguinidade e assegurar a transmissão do patrimônio familiar aos sucessores legítimos do pater familiae. Por isso é regulada a própria postura dos cônjuges, chegando ao ponto de se invadir a privacidade do casal. Basta ver a imposição do dever de fidelidade.
A família consagrada pela lei – a sagrada família – é matrimonializada, patriarcal, assimétrica, hierarquizada, patrimonializada, indissolúvel e heterossexual. Pelas regras do Código Civil de 1916, os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não gerarem quaisquer direitos ou obrigações, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de marginais, os vínculos afetivos extramatrimoniais nunca foram reconhecidos como família.
O casamento gerava um vínculo indissolúvel. Apesar de ocorrer por vontade dos nubentes, era mantido independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, a separação e o divórcio só eram deferidos, ou após o decurso de determinado prazo, ou mediante a identificação de um culpado – o qual não podia tomar a iniciativa do processo – o que evidencia a intenção de punir quem simplesmente queria se desvencilhar do casamento. Foi a Emenda Constitucional 66/2010 que acabou com a separação, a perquirição da culpa e a imposição de prazos para a concessão do divórcio, que pode ser obtido inclusive extrajudicialmente.
Como a única finalidade da família era a atividade procriativa, a prática sexual antes ou fora do casamento – ao menos para as mulheres – além de proibida, era punida. Daí o dogma da virgindade feminina, que só agora deixou de agregar valor à mulher. A ausência da virgindade era causa de anulação do casamento. Ora, se a noiva casava virgem e se mantinha casta, os seus filhos só poderiam ser filhos do marido. É o que a lei, até hoje, pressume. Em contra partida, como os filhos concebidos fora do casamento não podiam ser reconhecidos, a liberdade sexual dos homens sempre foi incentivada e até invejada.
Com a evolução político-cultural, deixou o Estado de se submeter aos rígidos dogmas da igreja, que atribuía à família uma natureza divina. Esse movimento, denominado secularização ou laicização, é a base da cultura liberal. Conforme Belmiro Pedro Welter, a moral, a contar da separação entre a igreja e o Estado, não é mais um mandato das alturas, não é sacra, e sim profana.[2]
A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como famílias, revela a visão sacralizada do conceito de família. Ainda que não exista qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, a negativa sistemática de estender a outros arranjos as normas do casamento evidencia a tentativa de preservação da família dentro dos padrões convencionais.
Apesar da proibição legal, estruturas de convívio fora do casamento sempre existiram. Mesmo sem nome, mesmo sem lei, acabaram forçando sua inserção social e foram bater às portas do Poder Judiciário. Primeiro procurou-se identificá-las a uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.
As causas da evolução foram muitas: a revolução industrial, o movimento feminista, o surgimento dos métodos contraceptivos, a engenharia genética. Mas a consequência foi uma só: o reconhecimento de o afeto ter valor jurídico, o que levou à pluralização do conceito de família.
Quando a Constituição Federal albergou no conceito de entidade familiar o que chamou de “união estável”, inserindo as relações extramatrimoniais no âmbito famíliar, tal não foi suficiente para que as uniões de pessoas do mesmo fossem dignas da tutela. Continuaram condenadas à total invisibilidade, como se. Assim, fossem desaparecer.
Há 25 anos as uniões homossexuais não eram reconhecidas em nenhum país do mundo. Os parceiros, ainda que vivendo juntos por décadas, nunca tiveram qualquer direito. Foi a Dinamarca, no ano de 1989, que admitiu a união civil, ainda assim fora do Direito das Famílias.
Há 15 anos os homossexuais não podiam casar. Tal só foi possível a partir de 2001, na Holanda. Agora 18 países admitem o casamento, todos por força de lei. Mas no Brasil, tal possibilidade decorre de decisão da Justiça.
- Família e casamento
A família sempre foi abençoada por todas as religiões, que buscam perpetuá-la por meio do casamento, o considerado um sacramento. É invocada a interferência divina para garantir sua indissolubilidade: o que deus uniu o homem não separa!
Parece que o casamento confere uma áurea de santidade aos seus membros, única forma de justificar o injustificável: negar aos pares do mesmo sexo acesso ao casamento.
A naturalização da ideia de que o casamento é entre um homem e uma mulher é de tal ordem que sequer o Código Civil faz esta exigência. Ao ser flagrada dita omissão surgiu a teoria do casamento inexistente, com o só intuito de não admitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
O receio de comprometer o conceito do casamento, limitado à ideia da procriação e, por consequência, à heterossexualidade do casal, não permitia que se inserissem as uniões homoafetivas no âmbito do Direito das Famílias. Quando reconhecida sua existência, eram relegadas ao Direito das Obrigações. Chamadas de sociedades de fato, limitava-se a Justiça a conferir-lhes sequelas de ordem patrimonial. Se um dos sócios conseguisse provar sua efetiva participação na aquisição dos bens amealhados durante o período de convívio, era determinada a partição do patrimônio, operando-se verdadeira divisão de lucros.
Tudo isso não conseguiu fazer com que uniões de pessoas do mesmo sexo deixassem de existir. Percorreram o mesmo calvário que foi imposto às uniões extramatrimoniais.
- Novas estruturas familiares
No Brasil, o evoluir da sociedade ao longo do último século levou a uma verdadeira transformação da família, que passou a ser referida no plural: famílias. A mudança foi inserida na Constituição Federal que trouxe o conceito de entidade familiar, mas não logrou enlaçar todas as formatações da família.
O constituinte se limitou a citar as espécies mais frequentes: o casamento, a união estável entre um homem e uma mulher e a constituída por um dos genitores com sua prole, que recebeu da doutrina o nome de família monoparental. O elenco constitucional é somente exemplificativo e não exaustivo. Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição não são números fechados.[3]
Da ideia sacralizada de casamento, passou-se ao pluralismo das entidades familiares, com alargamento de seu conceito, abrigando estruturas não convencionais, em que nem sequer o número ou o sexo dos partícipes é determinante para seu reconhecimento. A partir desta evolução – verdadeira revolução – passou-se a buscar uma definição de família que albergasse as diversas estruturas de convívio. E foi o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família que isolou o seu elemento identificador: o afeto. Este é o elemento fundante que permite reconhecer quando se está frente a uma estrutura familiar merecedora a tutela jurídica.
Relacionamentos afetivos geram obrigações mútuas, direitos e deveres de parte a parte. E, quando se fala em afeto e responsabilidade, sempre vem à mente a famosa frase de Saint-Exupéry: você é responsável por quem cativas! Não se pode deixar de visualizar nesse enunciado a origem do Direito das Famílias. Basta a existência de um comprometimento mútuo para se estar frente a um vínculo familiar. Assim, quem ama, seja quem for, assume deveres e encargos. Como o afeto gera ônus e bônus, as obrigações são recíprocas, pois quem tem direitos também tem obrigações. Este é o componente ético que precisa ser reconhecido e preservado.
A maneira de o ser humano buscar a felicidade perpassa pelo estabelecimento de elos de afetividade. Há até uma música que diz: é improvável, é quase impossível, ver alguém feliz de fato sem alguém para amar.[4] Se as relações se estabelecem da forma não legal ou não convencional, cabe ao juiz identificar a existência de um vínculo familiar para abrigá-las sob o manto da juridicidade. Essa é a única forma de se fazer Justiça: enxergar a realidade e flagrar as situações merecedoras de tutela.
A garantia da Justiça é o dever maior do Estado, que tem o compromisso de assegurar respeito à dignidade da pessoa humana, dogma que se assenta nos princípios da liberdade e da igualdade. Esta é uma nova realidade, contra a qual não adianta se rebelar. Simplesmente não ver o que está diante dos olhos não faz nada desaparecer. Tentar engessar a família ao modelo do casamento é deixar ao desabrigo da juridicidade uma legião de famílias que constituem a sociedade dos dias de hoje.
É mais atual do que nunca a célebre afirmativa de Virgílio de Sá que, já nos idos de 1923, reconhecia que a família não é criada pelo homem, mas pela natureza: o legislador não cria a família, como o jardineiro não cria a primavera.[5]
- Homoafetividade
O último censo revelou a existência de 60 mil famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo. Às claras que esse número não quantifica as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, e intersexuais, identificadas pela sigla LGBTI. Como não existe uma legislação que reconheça seus direitos e criminalize atos homofóbicos de que são vítimas, são reféns de toda a sorte de violência e agressões. Nada há de mais perverso do que condenar alguém à invisibilidade. Tanto é assim que a indiferença, o ignorar a existência, é a pior forma de maltratar alguém.
É indispensável admitir que os vínculos homoafetivos – muito mais do que relações homossexuais – configuram uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito. Embora não reconhecidas pelo ordenamento jurídico, são uma entidade familiar. A doutrina é amplamente favorável ao reconhecimento dos relacionamentos homoafetivos, que têm por base o afeto e a solidariedade. Por elementar princípio de igualdade indispensável que aos pares do mesmo sexo sejam concedidos os mesmos direitos dos companheiros heterossexuais. O dever de mútua assistência entre os parceiros homossexuais parte de uma perspectiva moral, desembocando em um verdadeiro dever de solidariedade, decorrente da própria união. A convivência implica em dever de consciência e um dever social e jurídico de atender ao sustento do convivente.[6]
Apesar do perverso preconceito de que são alvo, das perseguições que sofrem, mantem-se omisso o legislador. O fato de não haver previsão legal para situação específica, não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem impede que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação fática. A falta de previsão específica nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência de um direito merecedor de tutela.
Por medo de serem rotulados de homossexuais, de comprometerem sua reeleição, os parlamentares invocam preceitos bíblicos para pregar o ódio e a discriminação. Nada mais do que o preconceito disfarçado em proteção à sociedade. Não é por outro motivo que, até hoje, não foi aprovada qualquer lei que criminalize a homofobia ou garanta direitos às uniões homoafetivas.
A dificuldade de reconhecer que não é a possibilidade procriativa, mas a convivência afetiva, que caracteriza uma entidade familiar, sempre impediu que as uniões homoafetivas fossem tidas como união estável ou lhes fosse assegurado acesso ao casamento.
- Avanços jurisprudenciais
Até parece singelo ou piegas, mas é imperioso repetir o significado da vida e a finalidade do Estado. Se o cidadão busca a felicidade, cabe ao Estado garantir-lhe esse direito. Quando o legislador se omite, essa função é exercida pelo Poder Judiciário, que tem o encargo de fazer Justiça, sem que com isso se possa falar em afronta à divisão dos poderes ou de ativismo judicial.
As mudanças sempre têm início no meio social e acabam sendo trazidas aos tribunais. Os juízes trabalham mais rente aos fatos e, aos que têm mais sensibilidade, resta a missão pioneira de atentar a estas evoluções e julgar segundo a feição atual da sociedade. E a consolidação de novos paradigmas acaba por forçar sua inserção na lei e na própria Constituição.
Como a Justiça não consegue conviver com injustiças, passou a assegurar direitos à população LGBTI e a reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar.
Mas, até 25 anos atrás os juízes se consideravam mágicos. Simplesmente diziam que as uniões homossexuais não existiam. Não admitiam sequer que os homossexuais ingressassem na Justiça. As ações eram extintas. Somente no ano de 2008 o Superior Tribunal de Justiça veio a reconhecê-las.
A grande mudança começou no ano de 2000, quando o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu que a união homossexual é uma união estável e não uma mera sociedade de fato.
Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal proclamar as uniões homoafetivas como entidade familiar, concedendo aos casais homoafetivos os mesmos direitos dos casais que vivem em união estável.
A partir daí começou a jurisprudência a admitir a conversão da união homoafetiva em casamento, até que, em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça proibiu a qualquer autoridade negar o reconhecimento da união estável e o acesso ao casamento direto ou por conversão.
A consolidação das decisões judiciais deveria motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem do Direito. Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Afinal, é preciso que o Direito esteja acima de conceitos estigmatizantes, porque das relações de afeto, hétero ou homossexuais, decorrem consequências patrimoniais e, não dar a cada um o que é seu, foge aos ideais de Justiça.[7] Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que deve suprir a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados de preconceitos ou restrições morais de ordem pessoal.[8]
- Lei Maria da Penha: a legalização das uniões homoafetivas
O advento da legislação visando coibir a violência doméstica teve mais um mérito. A Lei 11.340/2006, que passou a ser chamada Lei Maria da Penha, é o primeiro marco legal que faz referência expressa às famílias homossexuais, ao proibir discriminação por orientação sexual. Diz reiteradamente que a toda mulher, independentemente de sua orientação sexual, goza do direito fundamental inerente à pessoa humana, e que as situações que configuram violência doméstica independem de orientação sexual.
O preceito dispõe enorme repercussão. Como é assegurada proteção legal a fatos que ocorrem no ambiente doméstico, isso quer dizer que as uniões de pessoas do mesmo sexo são entidades familiares. Violência doméstica, como diz o próprio nome, é violência que acontece no seio de uma família. Assim, a Lei Maria da Penha ampliou o conceito de família, alcançando as uniões homoafetivas.
Assim está assegurada proteção tanto às lésbicas como às travestis e transexuais do gênero feminino, que mantêm relação íntima de afeto, em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência justificam especial proteção.
Ao depois a lei define como família qualquer relação íntima de afeto, o que não permite excluir as famílias homoafetivas deste conceito. Às claras que os vínculos constituídos por pessoas do mesmo sexo são uma sociedade de afeto. Assim, quer as uniões formadas por um homem e uma mulher, quer as formadas por duas mulheres, quer as formadas por um homem e uma pessoa com distinta identidade de gênero, todas configuram famílias. Ainda que a lei tenha por finalidade proteger a mulher, ampliou o conceito de família, independentemente do sexo dos parceiros. Se também família é a união entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Basta invocar o princípio da igualdade.
A partir da nova definição de entidade familiar, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar alegando omissão legislativa para deixar de emprestar-lhes efeitos jurídicos.
O avanço é significativo, pois coloca um ponto final à discussão que entretém a doutrina e ainda divide os tribunais. Agora, não mais é possível excluir as uniões homoafetivas do âmbito do Direito das Famílias. Diante da definição de entidade familiar, não se justifica que o amor entre iguais seja banido do âmbito da proteção jurídica, visto que suas desavenças são reconhecidas como violência doméstica. A realidade demonstra que a unidade familiar não se resume apenas a casais heterossexuais. A legislação apenas acompanhou essa evolução para permitir que o Estado intervenha para garantir a integridade física e psíquica dos membros de qualquer forma de família.
- Homoparentalidade
Não só a família, também a filiação foi alvo de profunda transformação.
O afeto, elemento identificador das entidades familiares, igualmente começou a servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais. A jurisprudência passou a atentar ao melhor interesse da criança e do adolescente e a reconhecer o vínculo de filiação a quem eles consideram pai e que os ama como filhos. Tal fez surgir uma nova figura jurídica, a filiação socioafetiva, que se sobrepôs tanto à realidade biológica como a registral.
Das presunções legais de paternidade, chegou-se à plena liberdade de reconhecimento de filhos e à imprescritibilidade das ações para perquirir os vínculos de parentalidade, mesmo na hipótese de adoção. Está assegurado o direito ao conhecimento da ascendência genética, ainda que tal reconhecimento não gere direitos de natureza alimentar ou sucessória. Sequer se admite a alteração do registro de nascimento caso seja demonstrada a existência de uma filiação de natureza afetiva com quem registrou o filho como seu.
Indispensável reconhecer que crianças e adolescentes vivem e sempre viveram em lares de pessoas do mesmo sexo. Mas a maior aceitação das famílias homoafetivas tornou impositivo o estabelecimento do vínculo jurídico paterno-filial com ambos os genitores, ainda que sejam dois pais ou duas mães.
Negar reconhecimento à homoparentalidade, que se estabelece fora da realidade biológica, é gerar irresponsabilidades e inaceitáveis injustiças que não mais se conformam com as garantias constitucionais de respeito à dignidade da pessoa humana. Como lembra Zeno Veloso, o princípio capital norteador do movimento de renovação do Direito das Famílias é fazer prevalecer, em todos os casos, o bem da criança; valorizar e perseguir o que melhor atender aos interesses do menor.[9]
Com o surgimento da manipulação genética e dos métodos reprodutivos de fecundação assistida, o sonho de ter filhos se tornou realidade para todos. Assim, qualquer pessoa, independente da capacidade procriativa, vivendo sozinho ou sendo casado, mantendo união estável hétero ou homossexual, todos viram a possibilidade de concretizar o sonho de constituir uma família.
De forma para lá de desarrazoada, o Conselho Federal de Medicina impõe o anonimato às concepções heterólogas,[10] o que veda identificar a filiação genética. Ou seja, os vínculos de filiação não podem ser buscados na realidade biológica. No entanto, existindo um núcleo familiar, presente a vontade do par pela filiação, imperioso permitir que os pais elejam o doador do material genético, o que não gera qualquer confronto ético. Ao menos garante ao filho o direito de conhecer sua ancestralidade, se assim o desejar.
A definição da paternidade é condicionada à identificação do desejo do casal, nada mais do que o reconhecimento prévio da posse do estado de filho. A identificação da dupla paternidade independe de ter havido a participação de algum deles no processo reprodutivo. Para assegurar a proteção do filho, os dois pais precisam assumir os encargos decorrentes do poder familiar. Vetar a possibilidade do duplo registro, já quando do nascimento, só traz prejuízo ao filho, que não terá qualquer direito com relação a quem também desempenha a função de pai ou de mãe. Comprovado o consenso do casal quanto à procriação, seja pela assinatura conjunta do Termo de Consentimento Informado, seja por qualquer outro meio de prova, deve a identidade de ambos os pais constar na Declaração de Nascido Vivo e no próprio registro de nascimento.
Para o estabelecimento do vínculo de parentalidade, basta que se identifique quem desfruta da condição de pai, quem o filho considera seu pai, sem perquirir a realidade biológica, presumida, legal ou genética. Também a situação familiar dos pais em nada influencia na definição da paternidade, pois família é uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um lugar, desempenha uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente.[11]
Mais uma vez o critério deve ser a afetividade, elemento estruturante da filiação socioafetiva. Pretender excluir gays e lésbicas do direito a terem filhos é postura discriminatória com nítido caráter punitivo. Situação que surge com frequência é quando o casal faz uso da reprodução assistida. Será o pai ou a mãe somente quem se submeteu ao procedimento procriativo? O parceiro ou a parceira, que não forneceu material genético, fica excluído da relação de parentesco, mesmo que o filho tenha sido concebido por vontade de ambos? Legalmente, pai ou mãe será somente um deles, o genitor biológico, ainda que o filho tenha sido concebido por desejo dos dois. Mas permitir exclusivamente que a verdade biológica identifique o vínculo jurídico é olvidar tudo que a doutrina vem sustentando e a Justiça vem construindo. Como afirma Luiz Edson Fachin, a verdade genética não interessa, pois o filho foi gerado pelo afeto, e não são os laços bioquímicos que indicam a figura do pai, mas, sim, o cordão umbilical do amor.[12]
Não reconhecer a paternidade homoparental é retroagir um século, ressuscitando a perversa classificação do Código Civil de 1916, que, em boa hora, foi banida pela Constituição Federal de 1988. Além de retrógrada, a negativa de reconhecimento escancara flagrante inconstitucionalidade, pois é expressa a proibição de quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Rejeitar a homoparentalidade afronta um leque de princípios, direitos e garantias fundamentais.
É gaúcha a decisão que, pela vez primeira, e isso no ano de 2005, reconheceu o direito à adoção a um casal formado por pessoas do mesmo sexo. Os filhos haviam sido adotados por uma das parceiras, vindo à outra a pleitear a adoção em juízo. A sentença foi confirmada pelo Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça.
De lá para cá muito se avançou, ao se admitir a habilitação do par à adoção, procedendo ao registro em nome de ambos. Também é assegurado o duplo registro, quando uma gesta o óvulo da outra, fecundado em laboratório. Mesmo quando uma das mães não fornece material genético vem sendo reconhecida a dupla maternidade.
Mas, ao contrário do que acontece com o casamento, não existe qualquer norma, nem ao menos de natureza administrativa, admitindo que o registro seja levado a efeito quando do nascimento. Assim, se faz necessária a propositura de uma demanda judicial e, até o trânsito em julgado da sentença – que pode demorar muito tempo – a criança permanece sem direito à identidade, ao nome de um dos genitores, o que lhe subtrai a condição de dependente para todos os efeitos, quer previdenciários, quer sucessórios.
Deste modo, no atual estágio, os grandes desprotegidos pela ausência de uma legislação são as crianças que, ironicamente, deveriam ser alvo de proteção integral com prioridade absoluta, como determina a Constituição Federal.
- Estatuto da Diversidade Sexual
Todos os avanços levados a efeito pelo Poder Judiciário desafiam o Poder Legislativo a cumprir com o seu dever de fazer leis. No entanto, a maioria de seus integrantes, por puro preconceito, se mantém inerte, escudando-se em alegações pretensamente de ordem religiosa.
Como existe o direito subjetivo à livre orientação sexual e à identidade de gênero, há o dever jurídico de esse direito ser reconhecido, positivado e respeitado. Daí o desafio assumido pela Ordem dos Advogados do Brasil. Criou a Comissão da Diversidade Sexual no âmbito do Conselho Federal e Comissões em todas as Seccionais e em mais de 100 Subseções.
Um grupo de juristas, com a colaboração dos movimentos sociais, elaborou o anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual e apresentou propostas de emenda constitucionais para a alteração de sete dispositivos da Constituição Federal, o que deu origem a três Propostas de Emenda Constitucional. Duas delas já se encontram em tramitação no Senado Federal. Uma proíbe discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, inclusive nas relações de trabalho. Outra substitui a licença-maternidade e a licença-paternidade pela licença-natalidade, a ser concedida indistintamente a qualquer dos pais. A terceira assegura acesso ao casamento igualitário, substituindo a expressão “homem e mulher” por “duas pessoas”.
O Estatuto da Diversidade Sexual é o mais arrojado projeto de lei do mundo, pois não existe uma legislação tão ampliativa. Visa a promover a inclusão de todos, sem distinção; combater a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero; dar efetividade a uma série de prerrogativas e direitos a homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais.[13]
Por se tratar de segmento alvo de perseguição religiosa e preconceito social, sujeito à marginalização e à exclusão, o projeto foi desenhado a partir da concepção moderna de um microssistema. Teve por espelho outras legislações especiais, como o Código de Defesa do Consumidor, os Estatutos da Criança e do Adolescente, do Idoso e da Igualdade Racial, todos voltados a segmentos sociais vulneráveis, que merecem regras protetivas diferenciadas. Por isso são elencados princípios e garantidos direitos. Há normas de conteúdo material e processual, de natureza civil e penal. A homofobia é criminalizada e é imposta a adoção de políticas públicas a serem implementadas nas esferas federal, estadual e municipal.
Diante da enorme repercussão alcançada pela Lei da Ficha Limpa, foi desencadeado um movimento para angariar adesões e apresentar o Estatuto por iniciativa popular. A luta por sua aprovação certamente não é fácil, pois é necessário reunir cerca de um milhão e meio de assinaturas. Mas esta é a primeira vez que ocorre uma movimentação social pela aprovação de uma lei que assegure direitos às pessoas LGBTI. Certamente é o único jeito de driblar a postura omissiva do legislador que não mais poderá alegar que o projeto desatende ao desejo do povo.
Não há outra forma de a sociedade reivindicar tratamento igualitário a todos, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Assim, todos que acreditam que o Brasil é um estado livre e democrático precisam aderir à campanha.[14]
É chegada a hora de homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais saírem da margem do sistema legislativo brasileiro. Não se justificam as resistências às suas lutas.
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Como as uniões entre pessoas do mesmo sexo eram estéreis – ao menos até o surgimento das técnicas de reprodução assistidas – sempre foram rejeitadas, consideradas crime, pecado, uma abominação, uma aberração.
Por isso muita gente se arvora o direito de rejeitar, punir, matar gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. E a tendência da sociedade sempre foi assistir de forma indiferente e até aplaudir tais manifestações.
Daí a necessidade de se ter uma legislação, não só para conceder direitos, mas também para criminalizar a homofobia. Mas enquanto a lei não vem, a missão é do juiz. Não basta procurar a lei que preveja situação que retrate paradigmas pré-estabelecidos. A ele cabe identificar a presença de um vínculo de afetividade. É desnecessária expressa previsão legal para o estabelecimento dos vínculos afetivos e, via de consequência, para o reconhecimento de direitos e imposição de obrigações recíprocas.
Punir quem vive fora dos parâmetros aceitos pela moral conservadora não é função do juiz, nem do Estado, nem de ninguém. O juiz não pode usar a espada que consta do símbolo de sua profissão para podar direitos. Precisa arrancar a venda nos olhos e ver a necessidade de ser respeitada a diferença, cânone maior do direito à igualdade e à liberdade.
Está na hora de o Estado, mudar o perverso tratamento discriminatório que atinge segmento da sociedade, ainda refém do preconceito.
Já que a Constituição Federal consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, é indispensável reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, direito social de escolha e direito humano à felicidade.
Se o século XX foi o século das mulheres, o século XXI será o século de a população LGBTI ter seus direitos garantidos.
Referências bibliográficas
DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a justiça! Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.
FACHIN, Luiz Edson, Família hoje. A nova família: problemas e perspectivas. Vicente Barreto (Org.), Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
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Publicado em 07/03/2016.
[1] Advogada
Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB
Vice-Presidenta do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito das Famílias
www.mariaberenice.com.br
[2] Belmiro Pedro Welter, Estatuto da união estável, 229.
[3] Paulo Lôbo, Entidades familiares constitucionalizadas…, 106.
[4] Skank, Te ver.
[5] Euclides Oliveira, União estável: do concubinato ao casamento…, 25.
[6] Graciela Medina, Uniones de hecho homossexuales, 239.
[7] Rodrigo da Cunha Pereira. Concubinato e união estável, p. 155.
[8] Maria Berenice Dias, Homoafetividade: o que diz a Justiça, p. 18.
[9] Zeno Veloso. Direito brasileiro da filiação e paternidade, p. 180.
[10] Resolução CFM nº 2.013/2013, publicada em 09/05/2013.
[11] Rodrigo da Cunha Pereira. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica, p. 47.
[12] Luiz Edson Fachin, Família hoje:…, p. 85.
[13] Íntegra do Estatuto da Diversidade Sexual no site www.estatutodiversidadesexual.com.br.
[14] Adesões pelo site: www.estatutodiversidadesexual.com.br