Violência e o pacto de silêncio

Maria Berenice Dias[1]

 

As relações familiares, em sua grande maioria, têm origem em um elo de afetividade. Surgem de um enlaçamento amoroso. A essa realidade evidente por si só cabe questionar, afinal, por que as relações afetivas migram para a violência em números tão chocantes e surpreendentes? O mais intrigante é que nem sempre é por necessidade de sustento ou por não terem condições de prover sozinhas a própria existência que as mulheres se submetem, calam e não denunciam as agressões de que são vítimas.

Por que as mulheres sofrem em silêncio? Medo, vergonha, temor da incompreensão, sentimento de incapacidade, de impotência, tolerância à submissão, desrespeito a si próprias? Mas essas são as causas da violência ou são os motivos do silêncio?

O desejo do agressor é submeter o outro à vontade própria, é dominar a vítima, daí a necessidade de controlá-la. Para isso, busca destruir sua auto-estima. As críticas constantes fazem a mulher acreditar que tudo que faz é errado, de nada entende, não sabe se vestir nem se comportar socialmente. É induzida a acreditar que não sabe administrar a casa nem cuidar dos filhos.

O silêncio passa à indiferença e às reclamações, reprimendas, reprovações. Depois vêm os castigos, as punições. Os gritos transformam-se em empurrões, tapas, socos, pontapés, num crescer sem fim. As agressões não se cingem à pessoa da vítima, o varão destrói seus objetos de estimação, a envergonha em público, a humilha diante dos filhos. Sabe que estes são o seu ponto fraco e os usa como massa de manobra, ameaçando maltratá-los.

Para dominar a vítima, procura isolá-la do mundo exterior, afastando-a da família. Proíbe as amizades, denigre a imagem dos amigos. No entanto, socialmente o agressor é agradável, encantador. Em público se mostra um belo companheiro, a não permitir que alguma referência a atitudes agressivas mereça credibilidade.

Muitas vezes a impede de trabalhar, levando-a a se afastar de pessoas junto às quais poderia buscar apoio. Subtrai a possibilidade de a mulher ter um contato com a sanidade e buscar ajuda. A alegação de não ter um bom desempenho sexual leva ao afastamento da intimidade e à ameaça de abandono. O medo da solidão a faz dependente, sua segurança resta abalada. A mulher não resiste à manipulação e se torna prisioneira da vontade dele, o que gera uma situação propícia a verdadeira lavagem cerebral, campo fértil para o surgimento do abuso psicológico.

Facilmente a vítima encontra explicações, justificativas para o comportamento do agressor, acredita que é uma fase, que vai passar, que ele anda estressado, trabalhando muito, com pouco dinheiro. Procura agradá-lo, ser mais compreensiva, boa parceira. Para evitar problemas, afasta-se dos amigos, submete-se à vontade do agressor, só usa as roupas que ele gosta, deixa de se maquiar para não desagradá-lo. Está constantemente assustada, pois não sabe quando será a próxima explosão, e tenta não fazer nada errado. Torna-se insegura e, para não zangar o companheiro, começa a perguntar a ele o que e como fazer, torna-se sua dependente. Anula a si própria, seus desejos, sonhos de realização pessoal, objetivos próprios.

O vitimizador sempre atribui a culpa à mulher, tenta justificar seu descontrole na conduta da vítima, suas exigências constantes de dinheiro, seu desleixo para com a casa e os filhos. Alega que foi ela quem começou, pois não faz nada certo, não faz o que ele manda. Ela acaba reconhecendo que em parte a culpa é sua. Assim o perdoa. Para evitar nova agressão, recua, deixando mais espaço para a agressão.

Depois… vem o arrependimento, pedidos de perdão, choro, flores, promessas. A vítima sente-se melhor e acredita que ele vai mudar, e sente-se protegida, amada, querida. As cenas de ciúmes são recebidas como prova de amor, e fica lisonjeada.

Nesse momento a mulher vira um alvo fácil. A angústia do fracasso passa a ser seu cotidiano, questiona o que fez de errado, sem se dar conta de que para o agressor não existe nada certo. Não há como satisfazer o que nada mais é do que desejo de dominação, de mando, fruto de um comportamento controlador.

Tudo fica bom até a próxima cobrança, ameaça, grito, tapas…

Forma-se um ciclo em espiral ascendente que não tem mais limite.

O varão não odeia a vítima, ele odeia a si mesmo. Muitas vezes ele foi vítima de abuso ou agressão e tem medo, precisa ter o controle da situação para se sentir seguro. A forma de se compensar é agredir.

A sociedade protege a agressividade masculina, constrói a imagem da superioridade do homem. Afetividade e sensibilidade não são expressões da masculinidade. O homem é retratado pela virilidade. Desde o nascimento é encorajado a ser forte, não chorar, não levar desaforo para casa, não ser “maricas”. Os homens precisam ser super-homens, não lhes é permitido ser apenas humanos.

A idéia da família como uma entidade inviolável, protegida da interferência até da Justiça, faz com que a violência se torne invisível.

A violência é protegida pelo segredo, agressor e agredida fazem um pacto de silêncio, que livra aquele da punição. Estabelece-se um verdadeiro ciclo, a mulher não se sente vítima, o que faz desaparecer a figura do agressor. Mas o silêncio não gera nenhuma barreira a ele. A falta de um limite faz com que a violência se exacerbe. O homem testa seus limites da dominação. Quando a agressão não gera reação, aumenta a agressividade. O vitimizador, para conseguir dominar, para manter a submissão, exacerba na agressão.

A ferida sara, os ossos quebrados se recuperam, o sangue seca, mas a perda da autoconfiança, a visão pessimista, a depressão, essas são feridas que não curam.

Por isso, é preciso romper o pacto do silêncio, não aceitar nem ao menos um grito, denunciar a primeira agressão. É a única forma de estancar o ciclo da violência da qual a mulher é a grande vítima.

 

Publicado em 20/07/2005.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam

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