Violência e cidadania

 

Maria Berenice Dias[1]

 

 

De todos sabido que a finalidade primordial do Estado é assegurar a paz social, para garantir a felicidade do cidadão. O cumprimento dessa função ocorre pelo estabelecimento de uma ordem, originada na Constituição Federal, que norteia a vida em sociedade, consagrando princípios e estabelecendo regras jurídicas a serem espontaneamente respeitadas por todos.

Na hipótese de descumprimento dessas verdadeiras pautas de conduta, como é vedada a justiça de mão própria, surge o dever do Estado de recompor a harmonia social, pois detém o monopólio da jurisdição, reservando-se a exclusividade da aplicação do Direito.

Ainda que, em escassas hipóteses, a lei delegue ao cidadão o direito de proteger-se, não está autorizada a autotutela, e vedado é o desempenho de quaisquer outras atividades substitutivas divorciadas do aparato estatal em limitação à busca da segurança privada.

Necessário que, na busca de soluções, não se fique comodamente apontando as dificuldades existentes no combate a esta que é a maior chaga de nossa sociedade: a violência.

Se, dentro da clássica divisão dos Poderes, cada um deve garantir primordialmente a qualidade de vida do cidadão, é mister definir responsabilidades e identificar o que compete a cada um deles para o desempenho de seu papel.

Inquestionável que cabe reclamar do Executivo que melhore a infra-estrutura material e humana, para assegurar um aparato de segurança apto a garantir a aplicação da lei penal. Quer mediante o aparelhamento dos órgãos policiais, quer mediante adequada estruturação dos estabelecimentos carcerários, para que possam atender à finalidade reeducativa dos apenados.

Há que se clamar, inclusive, por uma reforma legislativa, não se mostrando suficiente a mera exacerbação das penas, como forma de coibir a violência. A despropositada reação punitiva, que se verifica, por exemplo, nos chamados crimes hediondos ou na impossibilidade de concessão de fiança nos crimes contra a fauna, resta por constranger os magistrados, que, por vezes, relutam em sua aplicação e, para evitar medidas injustas, acabam por gerar decisões inclusive contrárias à lei.

Tendo-se consciência de que a pena privativa de liberdade, como sanção principal, não leva à readaptação do delinqüente, é necessário encontrar soluções criativas, como as penas alternativas de prestação de serviços, com saliente caráter educativo, ou a generalização de medidas sócio-educativas, como a liberdade assistida, previstas exclusivamente no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Porém, não é com a pena de morte, com a severidade exagerada das leis penais ou por meio da supressão das garantias dos apenados que se vai exercer o controle social.

Também cabe exigir celeridade e eficiência do Judiciário nos julgamentos, a evitar a impunidade pelo advento da prescrição. Mas não basta apontar falhas estruturais sem ver que, muitas vezes, os embaraços advêm do exacerbado formalismo da própria estrutura processual e da verdadeira sacralização do direito de defesa, como, por exemplo, na obrigatória suspensão do processo enquanto o réu se encontra foragido.

É de atentar em que 70% dos processos que tramitam na Justiça envolvem infrações penais de gravidade mínima, o que dificulta um tratamento mais cuidadoso dos delitos de maior lesividade, impedindo a redução do prazo da instrução e a condenação em tempo mais abreviado, para tornar certa a punição.

A ausência de uma resposta imediata leva quase à certeza da impunidade e à descrença da população na repressão dos ilícitos, perpetrados cada vez com mais freqüência e maior violência.

Por isso, necessário voltar-se a sociedade à atividade de prevenção a essa criminalidade difusa, que tem levado ao incremento assustador da violência no meio social, em todos os seus níveis.

Para essa importante missão, há que se apelar ao cidadão, conscientizando-o de sua indelegável tarefa de não ser um agente multiplicador da violência.

É indispensável erradicar a violência doméstica, acabando com o sentimento de superioridade masculina, decorrente do ranço preconceituoso da hierarquização da família e do poder punitivo patriarcal, que chancela a agressão física à mulher e aos filhos.

Imperioso também conscientizar a sociedade da necessidade de sua efetiva participação, seja preservando o sigilo do comunicante, seja criando mecanismos que prestem informações, dêem orientações e tomem as providências necessárias de forma imediata a toda e qualquer denúncia.

Descabe considerar função privativa dos órgãos públicos a tutela dos valores primordiais da convivência humana, a ser levada a efeito exclusivamente pelo Estado, que se quer cada vez menos intervencionista.

Se, por um lado, a função punitiva em face do desrespeito à lei é monopólio estatal, sua prevenção compete ao cidadão. E é nessa sede que se há de conjugar as expressões violência e cidadania e a possibilidade de vê-las como sinônimas, e não antônimas.

 

Publicado em 01/03/2004.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

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