Uma magistrada em Pequim
Maria Berenice Dias
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Talvez haja quem questione o motivo que levou o Poder Judiciário a se fazer representar em uma Conferência Mundial sobre Mulheres promovida pela ONU na distante China.
Não fosse o fato de virtualmente ser julgado um número maior de processos envolvendo mulheres, visto que somam a maior parte dos jurisdicionados, é indispensável que o Judiciário atente na postura da sociedade, devendo se mostrar sensível às mudanças que se operam no mundo.
E posso dizer, porque lá estive, que efetivamente o mundo mudou a partir do mais concorrido evento já promovido pelas Nações Unidas.
A finalidade da ONU, ao realizar a Conferência Oficial, foi traçar uma política de universalização dos direitos da mulher e de respeito a sua dignidade, elaborando uma Plataforma de Ação para os próximos dez anos. Porém, os países participantes do evento firmaram um documento mais significativo, a Declaração de Beijing, verdadeira carta política por meio da qual assumiram o compromisso de implementar as metas traçadas durante o encontro.
A par do encontro oficial, que reuniu representantes de 180 países, o Foro Paralelo das Organizações Não-Governamentais agregou mais de 30.000 mulheres provindas de 218 países. No período de 30 de agosto a 8 setembro, foram desenvolvidas mais de cinco mil atividades, somando-se às sessões plenárias, workshops, palestras, debates e mesas redondas um significativo número de passeatas, concentrações, protestos e apresentações culturais. Esse encontro não tinha por finalidade elaborar qualquer documento conclusivo, mas pressionar as representações governamentais, mostrando a real situação das mulheres nos mais diversos lugares.
O reconhecimento de que os direitos das mulheres são direitos humanos reafirma que não são elas sujeitos da cultura, condicionadas às posturas religiosas ou tradições que as discriminam. Apesar de essa assertiva parecer óbvia para nós, não o é para uma significativa parte do planeta. Lá foi denunciado, só para citar, que, pelo Corão, somente o filho homem mais velho tem direito à herança. No Egito, pela Lei da Obediência e a Lei do Retorno, as mulheres não podem abandonar os maridos. Em Ruanda ocorre a matança sistemática dos fetos femininos, e na China, como cada família só pode ter um filho, o aborto é obrigatório.
A par dessas desigualdades, há situações universais. As mulheres de todos os lugares do mundo são vítimas da violência doméstica. A diferença de remuneração e a dificuldade de acesso a determinados postos têm levado à feminização da miséria.
As diversidades que se mostravam flagrantes, pela origem, raça, cor e maneira de vestir, deram um colorido especial ao encontro. Mas as diferenças desapareceram ante o uníssono grito em prol da igualdade, do desenvolvimento e da paz.
Publicado em 14/07/2003.