Uma justiça menos cega.

Maria Berenice Dias[1]

 

 

O sistema jurídico assegura tratamento isonômico e proteção igualitária a todos os cidadãos. Omitindo-se o legislador em regular situações dignas de tutela, as lacunas precisam ser supridas pelo Judiciário. Na presença de vazios legais, o juiz não pode negar proteção jurídica nem deixar de assegurar direitos sob a alegação de ausência de lei. Preconceitos e posturas discriminatórias, que tornam silenciosos os legisladores, não devem levar também a Justiça a calar. Imperioso que sejam reconhecidos direitos às situações merecedoras de proteção. Para conceder direitos aos segmentos alvos da exclusão social, impositiva a aplicação da analogia que leva à invocação do princípio da igualdade na busca de identificação da semelhança significativa.

As uniões entre pessoas do mesmo sexo, ainda não estão tuteladas na Constituição Federal, mas após o advento da lei Maria da Penha (L 11.340/06) nem mais dá para dizer que as uniões homoafetivas estão ao desabrigo do sistema jurídico, pois previstas na lei de combate à violência doméstica, É imperioso identificá-las como entidades familiares no âmbito do Direito das Famílias.

A mudança começou pela Justiça do Rio Grande do Sul, ao definir a competência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas. Esse, com certeza, foi o primeiro grande marco que ensejou a mudança de orientação da jurisprudência rio-grandense. Logo em seguida foi deferida herança ao parceiro do mesmo sexo e agora passou a se conceder a adoção a parceiros homossexuais. A mudança de rumo foi de enorme repercussão, pois retirou o vínculo afetivo homossexual do Direito das Obrigações, em que era visto como simples sociedade de fato, como se o relacionamento tivesse objetivo exclusivamente comercial e fins lucrativos. Esse equivocado enquadramento evidenciava postura conservadora e discriminatória, pois não conseguia ver a existência de um vínculo afetivo na origem do relacionamento.

É de se louvar a coragem de ousar quando se ultrapassam os tabus que rondam o tema da sexualidade e se rompe o preconceito que persegue as entidades familiares homoafetivas. Houve um verdadeiro enfrentamento a toda uma cultura conservadora e uma oposição à jurisprudência ainda apegada a um conceito conservador de família. Essa nova orientação mostra que o Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz justiça. Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação, deixando o Estado de cumprir com o seu compromisso maior que é conduzir o cidadão à felicidade.

Na esteira dessas decisões, encorajaram-se outros tribunais e, com significativa freqüência, se tem notícias de novos julgamentos adotando posicionamentos idênticos. Há a necessidade de se cristalizar uma orientação que acabe por motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem do sistema jurídico. Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que deve suprir a lacuna legislativa.

O caminho está aberto e imperioso que os juízes cumpram com sua verdadeira missão, que é fazer justiça. Acima de tudo precisam ter sensibilidade para tratar de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam ser julgadas com mais sensibilidade e menos preconceito e ou restrições morais de ordem pessoal. Há muito já caiu a venda que tapava os olhos da Justiça. O símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para o reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada.

A Justiça não é cega nem surda. Precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social e os ouvidos atentos para ouvir o clamor dos que por ela esperam. Mister que os juízes deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados e não punidos.

 

Publicado em 12/02/2008.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM

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