Um Estatuto contra a família

Maria Berenice Dias[1]

 

Há um espetáculo quase medieval que certamente todos já presenciaram: a verdadeira guerra campal das mulheres querendo pegar o buquê da noiva.

Mas tem algo que ninguém nunca viu: algum homem nesta disputa.

O significado do ritual de a noiva jogar o buquê, é: quem conseguir pegá-lo será a próxima a casar.

Inclusive tem um comercial que retrata muito bem esta diferença: a jovem liga para as amigas anunciando que vai casar. A alegria e a euforia é geral. Todas a cumprimentam.  Começam a gritar de alegria.

Já quando é o rapaz anuncia aos amigos que vai casar, a reprovação é imediata. Todos lastimam que vão perder sua companhia.

O paradoxo é porque historicamente – e ainda é assim – cabe ao homem pedir a mulher em casamento.

A iniciativa não pode ser dela. Vai parecer uma moça oferecida, fácil, postura inadequada de quem é educada para casar.

Claro que existe um componente cultural nesta diferença de posturas. A preparação da mulher para o casamento começa quando ela nasce. Um verdadeiro adestramento. Seus brinquedos são bonecas, panelinhas, casinha, tudo para ir se preparando à espera do príncipe encantado.

Para isso precisa ser pura, recatada, bem-comportada. Atributos todos ligados à abstinência sexual.  Até caiu o tabu da virgindade, mas para ser “boa para casar”, não pode ser uma piriguete  – seja lá o que isso signifique!

As mesmas atitudes por parte de um homem, não o desqualificam.  Ao contrário. Provam sua virilidade. É um pegador invejado pelos amigos. Isto porque foi criado para ser livre, competitivo. Assim são seus brinquedos: bolas, carrinhos…

Tem mais. Meninos precisam ser fortes, não podem chorar e nem levar desaforo para casa. Não podem nem ousar pegar uma boneca. O gesto é rechaçado com violência, em face do temor de que venha a ser homossexual.

Estas diferenças de natureza cultural se refletem até na forma de desqualificar alguém. A maior ofensa que se pode dirigir a uma mulher é acusá-la de fazer sexo casual.  Já a agressão ao homem é impor-lhe exatamente a conduta inversa. Caso não ostente uma atitude de superioridade perante as mulheres, com incessantes investidas para subjugá-las ao seu insaciável apetite sexual, é rotulado de tantas expressões pejorativas que nem cabe tentar decliná-las.

Deste modo, além das diferenças físicas entre homens e mulheres, são impostas diferenciações comportamentais muito mais significativas. Enquanto os sexos se complementam, as distinções de gênero os afastam.

Ou seja, a cada um é atribuído um papel, com valores e posturas diametralmente opostas. Ainda assim, eles têm o dever de se unir. Se a mulher não casa, nunca é por uma opção livre. É porque ninguém a quis, sobrou, ficou para titia, coitada! E se o homem não casar, claro que é gay. Será infeliz, discriminado, agredido, quem sabe morto.

O fato é que todas as religiões, credos e crenças se apropriam do desejo de se ter alguém para chamar de seu. A sacralização do casamento convoca os deuses para selar uniões para sempre. Nunca se ouviu algum celebrante dizer: mantenham-se casados enquanto forem felizes!

É imposta uma verdadeira condenação: a obrigação de ficarem juntos, crescer e se multiplicarem, até que a morte os separe, seja qual for a adversidade, na tristeza, na pobreza e na doença.

E ainda assim, o casamento é o ideal de felicidade de todo mundo. É o que os pais desejam a todos os seus filhos.

Esta é a grande desculpa dos pais para justificarem o preconceito contra os filhos que buscam outra forma de amar, seja quem for, do jeito que quiser.

E se a discriminação está na família, está na religião, se alastra a toda a sociedade.

Nem adianta o estado ser laico. A religião sempre influenciou e ainda influencia. E o pior, de forma cada vez mais intervencionista.

Mesmo o Brasil, historicamente um país católico, agora virou evangélico. O fundamentalismo tomou conta dos meios de comunicação, criou partidos políticos e, a cada eleição, perigosamente a bancada aumenta. Ao juntar-se com outros segmentos conservadores, virou maioria absoluta.

Vã tentativa de ver aprovado o Estatuto da Família, só reconhecendo o casamento entre um homem e uma mulher, não mais subsiste. Agora existe família sem casamento: a união estável. É possível fazer sexo sem casamento, até para as mulheres. E existe procriação sem sexo, as formas de reprodução assistida permitem isso. Mesmo quem não tem par, pode ser pai ou mãe.

Ou seja, o conceito de família mudou. E onde procurar a sua definição atual?  Talvez na frase piegas de Saint-Exupéry: a responsabilidade decorrente do afeto.

Surgiu assim a necessidade de se pluralizar o conceito de família, se passando a falar em direito das famílias. Assim, no plural. Neste conceito abrangente não dá para excluir as uniões formadas por pessoas do mesmo sexo. Afinal, são relacionamentos que se constituem em razão de um vínculo de afetividade. Daí, uniões homoafetivas.

E esta realidade não se pode mais ficar trancada dentro do armário. A tentativa de não ver, não reconhecer, gera um efeito perverso: a condenação à invisibilidade.

Não e negando reconhecimento é que se vai fazer um segmento de pessoas desaparecer. Não é impedindo alguém de amar, quem quiser,  do jeito que for, que se pode dizer que se vive em um país livre.

Onde ficam o princípio da dignidade, as conquistas dos direitos humanos, a primazia do direito dos indivíduos, o primado da igualdade e da liberdade?

A população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais – identificados pela sigla LGBTI, mesmo sem leis, começaram a buscar o reconhecimento de seus direitos.

Encontraram no Judiciário a garantia de um punhado de direitos, inclusive o de constituir uma família, com acesso ao casamento, à adoção e às técnicas de reprodução assistida. Ou seja ,a finalidade procriativa do casamento deixou de servir de justificativa para as uniões homoafetivas serem rechaçadas.

Só que estes avanços tiveram um efeito devastador: aumentaram os atos de homofobia. A cada 28 horas é morta uma pessoa no Brasil em face de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Mas, se a justiça consegue conceder direitos, não tem como condenar alguém sem que haja uma lei que defina este agir como criminoso.

Daí a criação de uma Comissão Nacional da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil bem como em todas as seccionais e em inúmeras subseções espalhadas Brasil a fora, com a finalidade de qualificar os advogados para atuarem neste novo ramo do direito.

Um grupo de juristas com o apoio das comissões e dos movimentos sociais elaborou o projeto do Estatuto da Diversidade Sexual,[2] a ser apresentado por iniciativa popular. No entanto, é necessária a adesão de um por cento do eleitorado, que corresponde a cerca de um milhão e meio de assinaturas.

É muita coisa. Mas parecia fácil. No entanto, é incrível a dificuldade das pessoas de se colocarem no lugar do outro, sentirem a dor alheia. Isto é solidariedade.

Há a necessidade de todos se mobilizarem para a construção de uma pátria mãe gentil, uma pátria amada Brasil: www.direitohomoaftivo.com.br

 

Publicado em 06/06/2015.

[1] Advogada

Vice Presidenta Nacional do IBDFAM

Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB

 

 

[2] Íntegra do Estatuto da Diversidade Sexual no site www.estatutodiversidadesexual.com.br.