Toda forma de amor vale amar

Maria Berenice Dias[1]

 

 

É improvável, é impossível ser feliz sozinho sem ter alguém para amar. É o que diz a música “Te Ver” do Skank.

Pelo jeito, para ser feliz é preciso ter alguém para chamar de seu.

Só que ter um par – aquela coisa boa do só vou se você for – mais do que a realização de um sonho, é  uma verdadeira imposição.

Em todos os tempos, todas as religiões, de qualquer credo ou crença, que acreditam no deus que for, sacralizam a união entre as pessoas, impondo o dever de se multiplicarem até a morte, mesmo na pobreza, na tristeza e na doença.

Quase uma danação!

É de tal ordem a obrigação da prática sexual no casamento, que se chega a falar em débito conjugal, sem que se fale em crédito conjugal.

Inclusive há quem diga que o casamento se consuma na noite de núpcias, e não momento da celebração.

Tanto isso é verdade que há tribunais que anulam o casamento quando um se recusa a cumprir o “débito conjugal”, sob a alegação de o outro ter sido induzido em erro, ao ver frustrada uma justa exceptiva.

Isto porque sempre houve interesse no aumento populacional: antes do surgimento das armas de fogo, ganhava a guerra quem tinha um número maior de soldados; em algumas regiões, ainda hoje, filhos significam mais força de trabalho grátis, configurando, muitas vezes, exploração do trabalho infantil; também mais filhos aumenta o número de fiéis da religião dos pais, tanto que existe o dever de batizá-los, sob pena de os filhos – e não os pais – serem severamente punidos pela omissão dos pais.

O fato é que ninguém é livre para não casar: se é uma mulher, coitada, sobrou, ninguém quis, ficou para titia; se é um homem, com certeza é gay.

Além de não ter a liberdade de casar ou não casar, ninguém é livre para escolher o par.

O homem necessariamente deve ser sempre mais: mais alto, mais velho, mais rico, mais culto. O sinal menos é da mulher.

E, é claro, para cumprirem a exigência de se reproduzirem, os noivos precisam ser de sexos diferentes.

A não ser por tal motivo, não há qualquer justificativa para o repúdio às uniões de pessoas do mesmo sexo. Difícil saber o motivo de tanta discriminação o fato de uma pessoa amar outra, seja do sexo que for. Afinal, o afeto não afeta o direito de ninguém, não prejudica outro. Só traz benefício ao par.

Será que é tão difícil perceber que esta é a forma que algumas pessoas encontram para ser feliz?

No entanto família, escola, colegas de trabalho, sociedade, todo mundo têm horror ao amor entre iguais.

A aversão é de tal ordem que no Brasil, a cada 28 horas, um homossexual é morto em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Este repúdio sempre levou a uma invisibilidade com efeitos perversos.

As uniões homossexuais eram tratadas como meras sociedades comerciais, em que os sócios visavam lucros a serem divididos segundo o aporte financeiro de cada um. Depois de anos de uma vida em comum, sendo o casal muitas vezes hostilizados pelos familiares, quando da morte de um, o outro nada recebia, não conseguia nem entrar na casa, ficava com a roupa do corpo. Os bens amealhado juntos vão para aqueles parentes distantes, ainda que eles nunca tivessem convivido com o falecido.

E quando homossexuais constituem famílias com filhos – sim, eles têm filhos: ou adotam ou fazem uso das técnicas de reprodução assistida – não conseguiam registrá-los no nome de ambos, só de um. O outro não podia nem inscrever o filho como dependente no seu plano de saúde.

Esta é a face feia do preconceito.

Daí a necessidade de novas expressões homoafetividade e heteroafetividade para evidenciar que se tratam relacionamentos da ordem do afeto e não do sexo. Foi assim que, no início deste século a justiça começou a reconhecê-las como entidade familiar, concedendo direito à herança, a pensão por morte e, a partir do ano de 2011, assegurando acesso ao casamento.

Aos filhos é assegurada a adoção pelos dois pais, o registro em nome de ambos, e até a concessão da licença natalidade. Só que, quando são dois pais, é descabido que a licença seja somente de cinco dias. E quando são duas mães, ambas fazem jus à licença de quatro meses?

Aos transexuais passou-se a reconhecer o direito de alterarem o nome e a identidade de gênero, sem terem que se submeter à cirurgia de transgenitalização.

Mas estes avanços no âmbito do Poder Judiciário não são suficientes.

É necessário uma lei para que as pessoas não precisem se socorrer da justiça, que de um modo geral, é lenta.

E, ainda que a justiça consiga conceder direitos, não tem como punir os delitos de ódio. Ninguém pode ser condenado se o fato não for considerado crime.

Daí a necessidade uma legislação que criminalize a homofobia e assegure todos os direitos à população LGBTI.

Não só lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Mas também aos intersexuais – é o que significa a letra “I” inserida na sigla. Eram os chamados de hermafroditas, por nascerem com o sexo genital indefinido.

Descabido que os pais escolham um sexo e submeta o filho a uma série de cirurgias, sem que ele tenha direito de optar sobre sua identidade de gênero. E, se quando crescer, tiver a identidade diferente do sexo que lhe foi aleatoriamente construído?

A omissão do legislador fez com todos os projetos apresentados, em 20 anos, nunca sequer chegassem a ser votados. Atualmente, em face do conservadorismo fundamentalista que vem tomando conta do Congresso Nacional, só tramitam projetos que visam retirar os direitos já assegurados pela justiça.

Daí a criação de uma Comissão Nacional da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil bem como em todas as seccionais e em inúmeras subseções espalhadas Brasil a fora, com a finalidade de qualificar os advogados para atuarem neste novo ramo do direito.

Um grupo de juristas com o apoio das comissões e dos movimentos sociais elaborou o projeto do Estatuto da Diversidade Sexual, a ser apresentado por iniciativa popular. No entanto, é necessária a adesão de um por cento do eleitorado, que corresponde a cerca de um milhão e meio de assinaturas.

É muita coisa. Mas parecia fácil. Afinal, é rápido, não dói e não transforma ninguém em homossexual.

Mas é incrível a dificuldade das pessoas de se colocarem no lugar do outro, sentirem a dor alheia.

Isto é solidariedade, o que poucas pessoas têm.

Todos querem ser respeitados, mas ninguém se preocupa em respeitar o próximo.

Ora, enquanto parcela de cidadãos não tem direitos reconhecidos, não se vive em um país livre, que se diz democrático de direito e cuja Constituição Federal prega a igualdade e o respeito à dignidade.

Vive-se a era dos direitos humanos. Todos são diferentes. E, ser diferente, não quer dizer desigual.

Todo mundo só quer ser feliz, ter o direito de amar.

Como diz Caetano Veloso, toda a forma de amor vale a pena, toda a forma de amor vale amar.

 

 

Pulicado em 02/06/2015.

 

[1] Advogada

Vice Presidenta Nacional do IBDFAM

Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB