Segurança notarial às uniões homoafetivas
Maria Berenice Dias[1]
Uniões entre pessoas do mesmo sexo existem? Sempre existiram! Alguém duvida disso?
Mas a tirania da maioria sempre repudiou segmentos minoritários: ou os ridicularizando ou os hostilizando. A enorme dificuldade de conviver com a diferença faz com que se tente afastar o que não é espelho.
Dita rejeição social reflete-se tanto no âmbito do Poder Legislativo como do Judiciário.
Com medo de comprometer sua reeleição, desagradar a maioria do eleitorado ou ser rotulado de homossexual, o legislador se omite em aprovar qualquer projeto de lei que assegure direitos à população LGBTI – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersex.
Diante do silêncio da lei, a tendência dos juízes sempre foi negar reconhecimento a direitos não expressamente assegurados no sistema jurídico normatizado. Esta sempre foi a justificativa apresentada para encobrir puro preconceito, como se a ausência de lei significasse ausência de direito. Ora, o juiz tem que julgar, ainda que inexista lei. É o que determina a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (4º) e o Código de Processo Civil (140) que, inclusive, retirou a possibilidade jurídica do pedido como uma das condições da ação (CPC 485 VI).
Estas manobras legiferantes e judiciais nada mais são do que tentativas de punir quem ousa dizer quem ama. Parece que se olvidam que toda a forma de amor vale a pena, toda forma de amor vale amar. Basta não causar prejuízo a ninguém e não fazer mal algum.
Marginalizar alguém pelo simples fato de ser diferente, fere um punhado de princípios constitucionais, como o da liberdade, da igualdade e da dignidade, o que resta por excluir o próprio direito à cidadania.
Apesar de tudo isto, os pares homossexuais resistiram e insistiram em buscar o reconhecimento de que suas uniões – que passaram a ser chamadas de homoafetivas – merecem segurança jurídica.
No entanto, como provar judicialmente sua existência? Em face da discriminação de que são vítimas, ainda precisam levar uma vida mais reservada, pois estão sujeitos à rejeição da família e à hostilidade de vizinhos e conhecidos. Por isso é difícil encontrar alguém que se dispunha a testemunhar, ter ciência de um relacionamento que é fonte de vergonha e alvo do repúdio geral.
Depois – ao menos até o surgimento da selfie –, como documentar viagens e a vivência em ambientes públicos, para subsidiar o acervo probatório? Como pedir a um transeunte que tire uma foto de um casal de homossexuais, ou abraçado ou se beijando?
Apesar da vontade livre e consciente de pessoas maiores e capazes de verem o seu vínculo de convívio admitido como existente, a omissão legal e as dificuldades probatórias as inibiam de bater às portas do Judiciário na busca do reconhecimento de algum direito, seja ele qual fosse: sociedade de fato ou sociedade de afeto; no âmbito obrigacional, do direito das famílias ou direito sucessório.
Diante do reconhecimento de que tais uniões não afrontam a “moral” e os “bons costumes”, alguns notários – em um primeiro momento em reduzido número, pois alvos de algum tipo de desconfiança – aceitaram lavrar escritura consignando que duas pessoas do mesmo sexo compareceram à sua presença e afirmaram que conviviam juntas há tantos anos, atendendo a todos os requisitos da união estável: continuidade, durabilidade, constituindo uma família. A publicidade sempre precisou ser relativizada, pela necessidade de os conviventes preservarem a própria integridade física. Nestes instrumentos, também eram consignadas manifestações de vontade do par: que fossem reconhecidos como uma entidade familiar, que cada um fizesse jus à meação dos bens adquiridos durante a união etc. Em caso de falecimento, manifestavam o desejo de que o sobrevivente fosse nomeado inventariante, sendo-lhe garantido direito à herança e direito real de habitação com relação à moradia comum.
Um documento público com tal conteúdo, ao ser levado a juízo, gera presunção legal da existência da união e de veracidade das assertivas nele contidas, a dispensar dilação probatória (CPC 374 IV), invertendo-se o ônus da prova. Deste modo, a quem interessar, é que cabe prova que a união não existiu, que a manifestação levada a efeito dispõe de algum vício que macule sua higidez.
Independentemente da validade e eficácia de algumas de suas cláusulas, principalmente antes de assegurado acesso ao casamento,[2] a escritura pública comprova, de maneira inquestionável, a existência do vínculo de convivência, nos termos afirmados, livremente, pelos declarantes.
Diante de documento chancelado pela fé pública de que gozam as certificações registrais, de todo descabido, por exemplo, exigir a propositura de ação declaratória da união para a concessão de algum direito. Igualmente desnecessário suspender o inventário e remeter às vias ordinárias o reconhecimento da existência da união.
A partir do momento que os tabeliães passaram a chancelar os vínculos homoafetivos, deram voz e vez a quem buscava, sem encontrar eco, respeito à justa manifestação de vontade de pessoas livres, que só desejam assumir obrigações e encargos perante seus afetos.
Publicizar por escritura e chancelar com a fé de seu ofício, foi a significativa contribuição dos serviços notariais para o amor entre iguais ser retirado da invisibilidade.
Afinal, o dever primordial do Estado é albergar no âmbito da tutela jurídica todos os seus cidadãos para poder protegê-los e garantir-lhes a o direito à felicidade.
Publicado em 28/08/2016
[1] Advogada
Presidente Nacional da Comissão da Diversidade sexual e Gênero da OAB
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família
[2] Resolução 175/2013 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça.