Questões patrimoniais e aspectos éticos do direito sucessório

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Sumário: 1. A omissão; 2. Uma mudança; 3. Algumas intervenções; 4. Muitas incongruências; 5. Inúmeras inconstitucionalidades; 6. Um punhado de interrogações; 7. A única solução.

 

 

  1. A omissão

O processo legislativo é mesmo muito demorado. Tanto que, muitas vezes, quando a lei chega, já está superada. Foi o que aconteceu com o Código Civil. O projeto inicial é da década de sessenta, ou seja, de meados do século passado! Desde lá muita coisa se alterou, principalmente a sociedade que a lei se dispõe a regular.

No âmbito da família, nem se fala. Mudou o seu formato de modo tão significativo que o próprio nome do direito que a regula se pluralizou. Agora se fala em Direito das Famílias.

Este alargamento do conceito de família teve início no momento em que se passou a admitir o casamento por amor e não mais por interesse de ordem econômica ou exigências sociais. E, conquistado o direito à felicidade, não há lei, crença ou religião que consiga engessar as pessoas dentro do casamento.

A nova formatação da família levou à aprovação do divórcio e fez com que a Constituição Federal reconhecesse como entidade familiar merecedora da tutela do Estado não só o casamento, mas também os vínculos de convivência informais e a convivência parental. Com isso, o conceito de família afastou-se do âmbito da genitalidade, o que impõe a procura de novos referenciais para defini-la.

A todas essas mudanças manteve-se insensível o codificador. No afã de promulgar a nova lei, acabou por aprovar uma lei velha. Certo que foram feitos enxertos e alguns remendos, o que, no entanto, não foi o bastante para que o Código retratasse a realidade que estava a reclamar tutela.

A tentativa de preservar o patrimônio familiar sempre foi – e ainda é – muito acentuada. Tanto quem elabora a lei, como quem a aplica, não esconde a intenção de manter os bens no âmbito doméstico, sem atentar às consequências de tal postura. Não se vislumbra, nem no legislador, e nem no juiz, o mínimo constrangimento em comprometer a própria sobrevivência de quem possa ameaçar a integridade patrimonial da família. Basta lembrar que os filhos chamados de ilegítimos não podiam ser reconhecidos. Somente lhes eram assegurados alimentos. Por décadas as uniões extramatrimonias foram identificadas como sociedades de fato, na qual os concubinos eram considerados simples sócios do capital  amealhado durante o prazo de vigência da sociedade, ou seja, o período  de vida em comum.  Até hoje, há enorme resistência em admitir a existência de famílias paralelas ao casamento. Todos que são rotulados de intrusos, a nada fazem jus. Para manter a indivisão dos bens da família constituída pelos “sagrados” laços do matrimônio, sempre foram condenados à invisibilidade.

 

  1. Uma mudança

O modelo de família que inspirou o Código era o matrimonializado e a única preocupação dizia com seus aspectos patrimoniais. Considerada uma instituição constituía exclusivamente pelo casamento, nunca houve qualquer preocupação em definir a família.

Mas as mudanças acabaram com a crença de que a família tem por fundamento: casamento, sexo e procriação. Agora há família sem casamento, pois a união estável não depende da chancela estatal. Também a prática sexual não integra mais o seu conceito, basta atentar às famílias monoparentais. Finalmente, a procriação não decorre exclusivamente da prática sexual, em face do surgimento das modernas técnicas de reprodução assistida.

A incansável busca para encontrar um conceito que retrate a família nos seus aspectos multifacetários levou o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família – a proclamar a afetividade como seu elemento caracterizador mais significativo.

Esta verdade foi acolhida pela Lei 11.340/06, a chamada Lei Maria da Penha. Diz o inc. III do art. 5º que família é uma relação íntima de afeto. Ainda que se trate de legislação que visa a coibir e prevenir a violência doméstica, passou a existir uma definição legal da família. Como o sistema jurídico é único, os conceitos servem para todos os fins, não havendo como emprestar-lhes significado restrito à lei em que se encontram. E, no momento em que surge um conceito legal de família tendo por tônica o vínculo de afetividade, impõe-se um novo paradigma para a identificação de responsabilidades. É necessário estabelecer consequências ao afeto também na esfera patrimonial.

A visualização do afeto como pressuposto constitutivo da família levou ao acolhimento de novo paradigma na identificação do vínculo de filiação. Deixou de ter prevalência a verdade genética. Surgiu toda uma nova linguagem: filiação socioafetiva, posse de estado de filho, estado de filho afetivo – que passou a servir de referencial para eleger os vínculos de parentalidade. Nada mais do que a valoração da teoria da aparência como elemento constitutivo das relações familiares. Pai é quem age como tal: cria, embala, alimenta, e não quem se limita a participar do processo procriativo.

 

  1. Algumas intervenções

Como a afetividade passou a integrar o panorama legal, restou suprida a omissão do Código Civil, que se limita a regular as questões patrimoniais do casamento. No mais, pouca coisa há na lei sobre a união estável e nada, absolutamente nada, é dito sobre a família monoparental, reconhecida como entidade familiar pela própria Constituição.

A grande preocupação sempre foi com o casamento, ou melhor, com os aspectos de ordem econômica, quer antes de sua celebração, quer depois de sua dissolução. Daí o cardápio de regimes de bens especificados de forma minuciosa. Ainda assim, há a possibilidade de os noivos deliberarem sobre questões patrimoniais do modo que melhor lhes aprouver, via pacto pré-nupcial, não ficando presos aos modelos disponíveis (CC 1.640, parágrafo único). Igualmente é possível alterar o regime de bens, mesmo durante o casamento. Só que, de forma para lá de desarrazoada é necessário justificar judicialmente as razões da mudança (CC 1.639, §2º).

Quando do casamento, mantendo-se omissos os nubentes, nada deliberando sobre os bens, a lei impõe regime que tem nítido conteúdo ético: o da comunhão parcial, em que os bens particulares pertencem a seus titulares, somente se comunicando o que for amealhado durante o casamento (CC 1.640).

Mesmo que haja a eleição do regime da comunhão universal ou da comunhão parcial, a lei impõe restrições descabidas e muitas vezes não desejadas pelo casal. Os bens adquiridos durante o casamento, em face da presunção de ter havido esforço de ambos para sua aquisição, são bens comuns. Com isso concordaram os cônjuges ao elegerem tais regimes de bens. No entanto a lei impõe exceções absolutamente desarrazoadas. Impede a comunicabilidade do salário e dos rendimentos decorrentes da atividade laboral, bem como dos livros e instrumentos de trabalho (CC 1.659). Ora, partindo do pressuposto de que as pessoas vivem com o fruto do seu trabalho, a exclusão acaba impondo o regime da separação de bens. Ao depois, não há como presumir que livros e instrumentos para o exercício da profissão foram adquiridos somente por quem os utiliza. Não é difícil imaginar o enorme sacrifício de ambos os cônjuges na aquisição do que é necessário para um deles desenvolver sua atividade profissional. Nada justifica que tais bens permaneçam na titularidade exclusiva do usuário, sem haver a devida compensação em favor de quem contribuiu para sua aquisição.

 

  1. Muitas incongruências

Quando da separação ou do divórcio a lei respeita – ainda que não de forma absoluta – a autonomia da vontade do casal. Mas, no âmbito do direito sucessório, há total desrespeito à deliberação dos cônjuges, o que configura flagrante afronta ao princípio constitucional da liberdade.

Independente da vontade manifestada pelo par quando do casamento, sobre o destino dos bens, há um indevido intervencionismo do legislador. Acaba impondo a divisão do patrimônio de forma diversa do convencionado por ambos ao escolherem o regime de bens. A lei elevou o cônjuge à condição de herdeiro necessário, assegurando-lhe direito sucessório ainda que, por exemplo, tenha sido eleito o regime da separação convencional de bens (CC 1.829, I e 1.845). Ora, pelo regime da total incomunicabilidade patrimonial, não há como deferir a herança ao cônjuge sobrevivente na inexistência de descendentes ou ascendentes.

Outro grande pecado do Código Civil foi atrelar o direito sucessório ao regime de bens do casamento.  O primeiro questionamento que surge é na hipótese de os cônjuges adotarem regime de bens híbrido. Usando da faculdade legal, podem deliberar sobre seus bens da foram que melhor lhes aprouver, não se sujeitando a um ou a outro dos modelos legais. Cabe figurar a hipótese de, por meio de pacto antenupcial, os cônjuges optarem por mais de um regime. Assim, podem eleger o regime da separação até o nascimento do primeiro filho, quando o regime passa a ser o da comunhão parcial. Neste caso, não há como saber se existe ou não direito concorrencial.

Mas há mais. O direito de concorrência sucessória concede ao cônjuge e ao companheiro fração da herança assegurada aos herdeiros de primeiro e segundo grau. Com isso a lei os elevou à condição de herdeiros necessários quanto ao quinhão que disputam junto com descendentes ou ascendentes (CC 1.790 e 1.829). A conclusão é uma só: o direito de concorrência coloca cônjuges e companheiros como herdeiros necessários com relação à fração do patrimônio que recebem a este título. O número de descendentes e de ascendentes, bem como a natureza do vínculo de parentesco com do falecido é que identifica o quinhão que irão receber os herdeiros necessários, o cônjuge ou o companheiro sobrevivente. Assim, a depender do regime de bens, a lei transformou cônjuge e companheiro em herdeiros necessários sobre a fração da herança que recebem a título de direito de concorrência.

Não é só! Grande é a polêmica travada em sede doutrinária na identificação dos regimes de bens em que tal vantagem é afastada. Como se trata da concessão de um direito, as exceções precisam ser expressas, pois não há como excluir direito por analogia. Deste modo, não existe direito concorrente somente no regime da comunhão universal de bens e no inconstitucional regime da separação obrigatória. Nos demais, por não excepcionados, há que se assegurar o direito. Portanto, o cônjuge tem direito à parte da herança no regime da participação final nos aquestos e no da separação convencional de bens (CC 1.829, I).

Quanto ao regime da comunhão parcial, a polêmica é ainda mais acirrada, em face da péssima redação do inc. I do art. 1.829 do Código Civil. De qualquer modo, tem vingado o entendimento de que ao cônjuge sobrevivente é assegurada fração dos bens particulares do falecido a título de concorrência sucessória.

Dita interpretação, ainda que descabida, é a prevalente. Concede direito a quem não ajudou a construir o patrimônio, o que gera enriquecimento sem causa. Ao depois, esta concepção se afasta do critério adotado na união estável em que o mesmo direito – de forma bem mais coerente – é calculado sobre os bens amealhados durante a união, partindo da presunção de que houve a participação de ambos na sua formação.

 

  1. Inúmeras inconstitucionalidades

Em face da estrutura atual da família, a transformação de cônjuges e companheiros em herdeiros concorrentes está em absoluta dissonância com modernas formas de conjugalidade. De modo cada vez mais frequente, as pessoas migram de um relacionamento a outro, tendo filhos dos vínculos anteriores e filhos das novas uniões. Tais formações familiares acabam colocando em conflito os filhos com os novos parceiros dos pais, pois sabem que serão alijados de parte do patrimônio que não mais retornará a eles. Assim, quem tem bens e filhos, se vier a casar, parte do seu patrimônio individual, que foi adquirido antes do casamento, passará às mãos do novo cônjuge. E, quando do seu falecimento, os bens não retornam aos descendentes do seu titular. Só um exemplo basta para flagrar a incongruência. Se alguém que tem filhos vem a casar, na hipótese de herdar a fazenda da sua família, parte de tal patrimônio não será transmitida aos seus descendentes. Ficará para o viúvo a título de direito concorrente por ser bem particular. E, quando ele falecer, nem assim, a fração recebida retornará aos herdeiros do titular do imóvel.

Este não foi o único pecado do legislador. A desiquiparação de tratamento entre ao casamento e à união estável escancara flagrante inconstitucionalidade. As duas formas de entidade familiar gozam das mesmas prerrogativas, nada justificando conferir ao cônjuge a condição de herdeiro necessário e ao companheiro não (CC 1.845). Igualmente inaceitável que o cônjuge figure em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária e o companheiro em último lugar, depois dos parentes colaterais de quarto grau (CC 1.790 e 1.829). Em sede de direito de concorrência, a diferença de tratamento também não tem qualquer explicação. Como na união estável vigora o regime da comunhão parcial, descabido contemplar o cônjuge com parte dos bens particulares e o companheiro com parcela dos bens comuns.

 

  1. Um punhado de interrogações

A concessão de herança a cônjuges e companheiros, a título de direito de concorrência, os eleva à condição de herdeiros necessários, em pé de igualdade com os descendentes e ascendentes. Como este direito lhes é assegurado por lei, o que recebem a este título trata-se de sucessão legítima. Deste modo, a fração da herança a que fazem jus cônjuges e companheiros, como herdeiros concorrentes, se submete às mesmas vicissitudes e iguais prerrogativas a que está sujeito o quinhão dos herdeiros necessários.

Já que cônjuge e companheiro são herdeiros necessários, as doações feitas a favor deles configuram adiantamento não de legítima, mas de direito concorrente. Assim, o que receberem por doação precisa ser trazido à colação (CC 2.002). Só quando expressamente o doador dispensa a colação é que ocorre partilha em vida, que incide sobre bens disponíveis (CC 2.018).

De outro lado, cônjuge e companheiro podem ser deserdados, bem como há a possibilidade de serem declarados indignos, sujeitando-se a perderem a fração dos bens recebidos (CC 1.814 e 1.961). Tais punições impostas aos herdeiros necessários se estendem aos herdeiros concorrentes.

Já que o direito de concorrência se trata de herança, nada impede que o titular do patrimônio imponha as cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade, contanto que justifique tais limitações (CC 1.848 e 1.911). São limitações que, por atingirem herdeiros necessários, podem limitar os herdeiros concorrentes.

Apesar de todas essas peculiaridades, um dos pontos mais nevrálgicos diz com a identificação do acervo a servir de base para o cálculo do quinhão a ser recebido a título de direito concorrencial.

É preciso alertar que a parte a ser atribuída a titulo de direito concorrencial não é uma fração do quinhão do herdeiro. Admitindo-se a solução preconizada maciçamente pela doutrina, e que vem recebendo a chancela do judiciário, quando o falecido era casado pelo regime da comunhão parcial de bens, o direito de concorrência é calculado sobre os bens particulares (CC 1.829). O primeiro passo é identificar os bens comuns e os bens particulares. Dos bens comuns mister excluir a meação do cônjuge sobrevivente que não integra a herança. Esta se constituiu da meação do falecido somada aos seus bens particulares. Depois, é necessário somar os bens trazidos à colação e que foram recebidos pelos herdeiros a título de adiantamento de legítima. Com relação a estes, também é preciso saber sua origem, se bens comuns ou exclusivos do doador. Quantificados os bens particulares, sobre esses é que será calculada a fração a que faz jus o cônjuge a título de concorrência sucessória. Do que sobrar de tal operação, soma-se a metade dos bens comuns para só então proceder-se à divisão da herança entre os herdeiros necessários.

Não são muito diferentes os cálculos a serem feitos quando o falecido vivia em união estável. O que facilita é que a fração do companheiro é calculada sobre os bens comuns e não sobre os particulares.

Mas não são somente estes complicados cálculos a serem feitos. A presença de filhos comuns e filhos exclusivos do de cujus exige a aplicação de fórmulas matemáticas das mais complexas, tanto para quantificar a quota mínima do cônjuge como a fração do companheiro sobrevivente quando houver a chamada filiação híbrida, ou seja, herdeiros que são filhos só do falecido e herdeiros-filhos comuns com o titular do direito concorrente.

 

  1. A única solução

Às claras que o legislador, ao aprovar às pressas o Código Civil, para se ver imortalizado como codificador, não tinha ideia do que estava previsto e jamais imaginou todas as dificuldades e desdobramentos que alguns de seus dispositivos poderiam trazer. Sequer tinha consciência das perversas injustiças que sua aplicação poderia gerar, e que repugnam ao bom senso de qualquer pessoa.

Deste modo, quando a lei não dispõe de conteúdo ético e nem referendo lógico, não há como ser aplicada. A única solução é se ter os dispositivos como não escritos, na esperança de que sejam derrogados por falta de uso.

A quem tem o dever de aplicar a lei é que cabe o controle da sua efetividade. A Justiça não pode chancelar regras legais absolutamente divorciadas da realidade e cuja incidência é despida de qualquer fundamento jurídico.

A responsabilidade é de todos nós!

 

Publicado em 02/04/2009.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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