Que família?

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Soa no mínimo estranho ter sido instituído o dia o 21 de outubro como Dia Nacional de Valorização da Família. Claramente mais uma das tantas tentativas de formatar os vínculos afetivos dentro de um único modelo conservador: matrimonializado, patriarcal, patrimonial, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual.

O fato é que, tanto o estado como todas as religiões, credos e crenças, sempre tentaram amarrar e eternizar os vínculos afetivos. Para isso foi criado o casamento. Simples contrato considerado uma instituição, um sacramento, com a só finalidade de impor ao par o dever de se multiplicar até a morte.

A sacralização do matrimônio como única forma de constituir família sempre teve – e ainda tem – efeitos nefastos. Durante mais de meio século as uniões extramatrimoniais, chamadas de marginais ou ilegítima, não eram consideradas família. Com isso a justiça fez legiões de mulheres famintas, pois nunca lhes concedeu nem alimentos, nem direito a qualquer bem.

As uniões paralelas são outro exemplo. Batizadas mais recentemente com o nome de poliamor ou uniões poliafetivas, continuam alijadas do sistema legal, na vã tentativa de fazê-las desaparecer. Mas condenar à invisibilidade, negar efeitos jurídicos, acaba por chancelar o enriquecimento injustificado do homem quem mantém duplo relacionamento.

De igual modo as uniões formadas por pessoas do mesmo sexo, que são alvo da mais perversa exclusão social e legal. A saída foi criar a expressão homoafetividade, que ressalta mais a natureza afetiva do que meramente sexual do relacionamento. Certamente foi o que levou a justiça a reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar e assegurar acesso ao casamento.

Mas não basta a construção jurisprudencial. Há a necessidade de uma legislação, não só para conceder direitos, mas também para criminalizar a homofobia. Este foi o compromisso assumido pela OAB ao elaborar o Estatuto da Diversidade Sexual e coordenar um movimento nacional de coleta de assinaturas para apresentá-lo por iniciativa popular.

Mas o que se vê no Dia Nacional de Valorização da Família são comemorações promovidas por igrejas evangélicas afrontando até o que preconiza a Constituição Federal, que reconhece como entidade familiar, merecedora da especial proteção do estado, não só o casamento como também a união estável e a família monoparental.

Na realidade dos dias de hoje é indispensável ter uma visão plural das estruturas vivenciais, inserindo no conceito de entidade familiar todos os vínculos afetivos que, por imperativo de ordem ética devem gerar direitos e impor obrigações.

Não é mais possível viver em um mundo que exclua pessoas do direito à felicidade. Afinal, esta é a finalidade da sociedade e a razão de ser do estado. Por mais piegas que possa parecer, é só isso que todos queremos: o direito de ser feliz.

 

 

Publicado em 21/10/2013.

 

[1] Advogada