Quando eu era estudante de Direito

Maria Berenice Dias[1]

 

Antes de falar de quando eu era estudante de Direito, talvez seja necessário mostrar o quão difícil era, à época, uma mulher ingressar em um curso voltado exclusivamente para os homens. Afinal, havia cursos universitários que não eram “coisa pra menina”. Sim, nos idos dos anos 60, as mulheres eram educadas exclusivamente para serem boas esposas, mães exemplares e donas de casa perfeitas. Precisavam ser dóceis, recatadas e almejar somente o seu príncipe encantado, para casar e serem felizes para sempre… Estudar para quê? Era suficiente aprender as lidas domésticas. Tanto tal era verdade que os brinquedos das meninas eram bonecas, panelinhas e casinhas, nada mais do que adestramento para serem a rainha do lar.

No máximo as mulheres podiam ser professoras, atividade que não atrapalhava suas obrigações de dona de casa, pois as afastava do lar somente meio turno e permitia-lhes desfrutar de longos períodos de férias. Além disso, trabalhavam somente com outras mulheres, o que afastava a possibilidade de alguma traição.

Por outro lado, os meninos, esses sim, eram livres, tanto que brincavam com bolas, carrinhos e aviões. Ao depois, mais do que podiam, deviam desde cedo exercer sua sexualidade, como meio de provar sua virilidade. Já as meninas… bem, tinham de se manter virgens como prova de pureza e castidade.

Nesse panorama é fácil entender a enorme dificuldade de as mulheres ingressarem em um tão competitivo universo formado exclusivamente por homens – sexo forte que detinha o monopólio do mundo público, das profissões nobres e rendáveis.

Foi esse o clima em que fui criada. Meu pai era magistrado, tanto quanto o meu avô, tendo ambos chegado a desembargadores. Cresci em meio a processos, os quais jamais podiam ser tocados. Vivenciava as angústias de meu pai em meio a uma avalanche sem fim de trabalho. Muitas vezes o surpreendia, no meio da noite, na sacada, mirando a escuridão. Perguntando-lhe o que estava fazendo, a resposta era uma só: ainda não encontrei uma solução para um processo.

Claro que nesse ambiente, em que se respirava a busca da justiça, só podia sonhar ser juíza. Mas este era um sonho impossível que nunca ousei contar para ninguém. Assim como todas as outras jovens da minha idade, cursei a Escola Normal, nome à época da escola preparatória de professoras primárias.

Porém, depois do estágio, em que passei um semestre tentando alfabetizar um bando de crianças, dei-me conta de que não era aquilo que queria.  Quando contei ao meu pai, ele chorou de emoção: enfim um de seus cinco filhos queria seguir seus passos. Claro que, para compensar o tempo perdido, tive de me dedicar de corpo e alma para ingressar no Curso de Direito, pois não havia coincidência de matérias entre o magistério e o programa do vestibular. Nunca havia tido uma aula de latim, e tal prova era eliminatória.

Meu esforço foi recompensado ao ingressar na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a mesma escola onde haviam estudado o meu pai e meu avô. Ainda me lembro da emoção do primeiro dia de aula. Entrei segurando, na mão trêmula, a caneta que ganhei do meu pai, uma Parker 51, onde estava gravado: Dr. César Dias Filho – Juiz de Direito.

Embalei durante todo o curso o desejo de seguir os seus passos: ser juíza. Só não sabia que este era um sonho impossível. Às mulheres era vedado integrar a magistratura estadual. Jamais havia sido homologada a inscrição de uma candidata. Como o Tribunal, em se tratando de concurso de ingresso na carreira, dispunha de poder discricionário, simplesmente rejeitava o pedido de inscrição de todas as mulheres. Por isso, nenhuma havia conseguido, até então, prestar concurso.

Ainda assim, mesmo sem a possibilidade de sequer fazer as provas, durante mais de um ano, dediquei-me a estudar para um concurso que, como todos diziam, jamais conseguiria fazer. Mas isso não me desestimulou. Continuei, com muita determinação e disciplina, estudando, estudando, estudando…

Houve uma grande movimentação social e um engajamento dos meios de comunicação para que fossem homologadas as inscrições das mulheres, à época mais de 60 candidatas em um universo de 300 inscritos. Com o voto de desempate do Presidente do Tribunal, por 13 votos contra 12, as mulheres, pela vez primeira, prestaram concurso para a magistratura, e isso no ano de 1972. Confesso que não foi fácil! Primeiro foi necessário convencer a comissão do concurso de que as provas não podiam ser identificadas. Depois, tornou-se indispensável que as provas orais fossem acompanhadas por várias pessoas, em face da ameaça velada de serem reprovadas todas as mulheres que haviam logrado vencer as provas escritas.

Depois de todos esses percalços é que consegui realizar o meu grande sonho. Tornei-me a primeira mulher a ingressar na magistratura gaúcha. Somente uma pessoa lá não estava para comemorar essa vitória: meu pai. Ele havia morrido na véspera de minha formatura, não tendo conseguido participar do evento que disse ser o mais emocionante de sua vida: conferir-me o grau de Bacharel em Direito.

Por ter sentido na carne a dor da discriminação é que me tornei defensora de todos a quem a sociedade vira o rosto, o legislador nega proteção e a justiça insiste em não ver. Abracei não só a luta feminista, mas cerrei fileira na luta dos negros, dos homossexuais, dos deficientes, enfim, de todos os excluídos.  Empunhei todas as bandeiras, passei a ser a voz de quem ninguém quer ouvir. Nunca cansei de bradar por uma justiça mais justa, mais sensível aos problemas sociais, menos preconceituosa e mais preocupada em assegurar a felicidade de todos os cidadãos, que é, no fim, o sonho de todos nós.

 

 

Publicado em 11/05/2005.

 

[1] é Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Vice Presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Autora de diversos livros, tendo seus artigos disponíveis no site www.mariaberenice.com.br