Preconceito. Não faz mal a ninguém?

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Pois é, tem uma frase que afirma: preconceito, não faz mal a ninguém! Achei que era uma música e procurei no Google. Como não encontrei, talvez não exista. Afinal, o que não está no Google não está no mundo!  Mas encontrei nada menos do que cinco milhões de referências à palavra  preconceito. E, ao navegar por alguns sites e blogs, todos os que se manifestam, afirmam não ter preconceito contra nada e nem contra alguém.

Assim, até parece que preconceito não existe. Ou será que não faz mal a ninguém?

Porém, há um dado que ninguém duvida. Todos, absolutamente todos, em alguma situação de vida já se sentiram alvo de algum tipo de preconceito. Como o modelo é o homem branco, bonito, alto e rico, qualquer um que foge do esteriótipo, por ser mais baixo; ter menos cabelo ou orelhas protuberantes; por ter uns quilos a mais ou a pele com alguma cor; e até pelo só fato de ser do sexo feminino ou ter orientação homossexual, todas essas características viram ponto de referência. Só eu sei a dor de ter ousado sonhar ser juíza em uma época – nem tão distante assim, na década de setenta – em que julgar era uma missão exclusivamente masculina, ao menos aqui no sul do país.

Enfim, ninguém escapa.

Talvez por isso a Constituição Federal seja enfática, e até repetitiva ao proclamar o princípio da igualdade como fundamento de um Estado que se diz Democrático de Direito. Nada mais do que um brado contra o preconceito. Afinal, se vivemos – e vivemos – em um país livre, em que todos são iguais perante a lei, e têm garantido um punhado de direitos e garantias fundamentais, não há como conviver com o tratamento desigualitário, seja ele qual for.

A estratificação da sociedade, no entanto, traz reflexos outros, e bem perversos. A perniciosa influência religiosa impõe padrões de comportamento alinhados aos seus dogmas, levando à exclusão tudo o que foge de seus preceitos marcadamente conservadores. Para agradar o eleitorado e garantir a reeleição o legislador produz regras jurídicas que preservam determinadas estruturas, na tentativa de perpetuar o que é aceito como certo pelos segmentos majoritários. Com isso se dá a naturalização dos modelos postos. Consagra-se a mesmice do igual.

A legislação, ao chancelar somente as instituições abençoadas como sagradas, gera enorme contingente de excluídos os condenando à invisibilidade. E não há nada que deixe alguém mais desprotegido do que ficar à margem do sistema jurídico. Tal é o que ocorre, por exemplo, com os vínculos afetivos formados por pessoas do mesmo sexo. Mesmo com o nome de homoafetivas, as uniões homossexuais, por absoluto preconceito, não estão expressamente abrigadas no conceito de entidade familiar. No entanto, a falta de previsão legal não permite alijá-las do âmbito do direito das famílias – nova expressão cunhada para evidenciar que a família é mesmo plural.

Ainda que a falta de lei não signifique ausência de direito, de forma ainda muito significativa, a tendência é reconhecer a impossibilidade jurídica das demandas que buscam direitos não elencados expressamente na lei. Até parece que não vigora o sistema integrativo, que veda o non liquet. A determinação é de que deve o juiz julgar, mesmo na ausência de norma lrgal. Precisa obedecer ao art. 4º da Lei de Introdução do Código Civil: o juiz decidirá.

Mas o preconceito fala mais alto do que a lei. Por medo de ser rotulado de homossexual, de ser ridicularizado por seus pares, de comprometer a estabilidade da vida em sociedade, a tendência da grande maioria dos magistrados é negar reconhecimento às uniões homoafetivas. Sociedades de afeto são chamadas de sociedades de fato, analogia que esconde a dificuldade em visualizar o vínculo afetivo que une os parceiros. E, sendo esses identificados como sócios, são também excluídos do direito sucessório. Afinal, sócios não podem ser herdeiros. Assim, fortunas amealhadas ao longo de uma vida a dois acabam em mãos de parentes distantes ou são declaradas como herança vacante.

É chegada a hora de tomar consciência de que, posturas discriminatórias, sem qualquer comprometimento com o resultado ético na aplicação do direito, geram enormes distorções.

Tal ocorre toda a vez que a venda do preconceito encobre os olhos da Justiça.

 

Publicado em 17/02/2011.

 

 

[1] Advogada especializada em direito das famílias, sucessões e direito homoafetivo

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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