Politicamente correto

Maria Berenice Dias[1]

           

Não é preciso declinar a série de vocábulos e expressões utilizados para identificar um fato natural, que sempre existiu, mas que a humanidade insiste em rejeitar: o amor ao mesmo sexo. O preconceito e a discriminação que cercam as variantes que se afastam da sexualidade aceita como correta – pelo simples fato de ser majoritária – levam ao surgimento de denominações que acabam sempre escorregando para o escárnio e o deboche.

No princípio, chamava-se de sodomia as relações de pessoas do mesmo sexo. Seguiu-se a expressão homossexualismo, que foi afastada por significar “desvio ou transtorno sexual”. O sufixo “ismo” utilizado para identificar doença foi substituído por “dade”, que quer dizer “um modo de ser”. Assim, surgiu a palavra homossexualidade, que, na Classificação Mundial das Doenças – CID, passou a nominar: “transtorno da preferência sexual”.

Jurandir Freire Costa, com sua inegável autoridade, denuncia a conotação pejorativa de tais expressões e introduz o vocábulo homoerotismo, pretendendo revalorizar as experiências afetivo-sexuais.

Com essa mesma intenção, mas buscando subtrair o teor sexual dos vínculos interpessoais, acabei por criar o neologismo homoafetividade, para realçar que o aspecto mais relevante não é de ordem sexual. A tônica de todos os relacionamentos é a afetividade, e o afeto independe do sexo do par.

Também a diversidade de manifestações da sexualidade leva a um rosário de expressões, tanto que a singela expressão GLS, que significava “gays, lésbicas e simpatizantes”, vem recebendo cada vez mais letras para englobar travestis, transexuais – agora nominados transgêneros – e bissexuais. Enfim, cada manifestação da sexualidade quer ter identidade própria.

Mas as divergências não se esgotam em questões terminológicas. Mesmo com referência aos direitos a serem assegurados, não existe consenso. Enquanto alguns buscam somente o reconhecimento de direitos a partir da manifestação escrita da vontade, há os que se integram na luta para a aprovação da lei da parceria civil. Outros querem ver suas relações identificadas como união estável. Uma parcela significativa pretende que lhe seja assegurado o direito de casar.

Nesse emaranhado de palavras e expressões – sempre permeadas de outras de conotações jocosas e depreciativas –, ainda existe um abismo, até que se passe a encarar e, por conseqüência, nominar de um modo natural quem se afasta do modelo tido como certo, normal, de conformidade com a moral e os bons costumes.

A partir do movimento “saindo do armário”, significativos têm sido os avanços no sentido de emprestar maior visibilidade e assegurar mais respeitabilidade aos vínculos homoafetivos.

Mesmo sem uniformidade terminológica, e sequer convergência quanto aos direitos a serem garantidos, chama a atenção a medida recentemente adotada no Reino Unido proibindo a utilização da palavra homossexual em documentos oficiais, conferências públicas e atas do governo, por ser considerada antiga e discriminatória. Em substituição, foi determinado o uso da expressão “pessoa com orientação para outra do mesmo sexo”, ou simplesmente “gay”.

Não importa se essa é uma vitória do movimento homossexual ou mera medida demagógica, que nada contribuirá para minorar a discriminação ou o preconceito. Há que reconhecer aí uma tentativa salutar, pois mostra ao mundo que está na hora de riscar do vocabulário não só uma simples palavra, mas a injustificável intolerância para com a homoafetividade.

Não se trata apenas de buscar palavras politicamente corretas, mas – sobretudo – posturas humanas e sociais, libertárias e democraticamente corretas.

 

Publicado em 05/08/2004.

 

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

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