Poliafetividade, existe?

Maria Berenice Dias[1]

 

Há um fato que ninguém duvida: vínculos afetivos concomitantes nunca deixaram de existir, e em larga escala. Alvo do repúdio social sempre receberam denominações pejorativas: concubinato adulterino, impuro, impróprio, espúrio, de má-fé, concubinagem.

Em face das enormes mudanças no conceito de família, provocadas pelo IBDFAM – Instituo Brasileiro de Direito de Família, o afeto passou a ser o elemento identificador da entidade familiar, não engessada no modelo sacralizado do matrimônio. Apesar dos avanços, resistências ainda existem. Vínculos afetivos paralelos – batizados mais recentemente como poliamor ou uniões poliafetivas -, continuam alijados do sistema legal, na vã tentativa de fazê-los desaparecer. Mas condenar à invisibilidade, negar efeitos jurídicos, chancela o enriquecimento injustificado do homem que mantém duplo relacionamento.

Somente é reconhecida uma sociedade de fato se a mulher alegar que desconhecia a duplicidade de vidas do parceiro. Caso confessar que desconfiava ou sabia da traição, a nada faz jus. É punida pelo adultério que foi cometido por ele. Já a esposa saber do relacionamento do marido, não tem qualquer significado. O homem que foi infiel, desleal às duas mulheres é “absolvido”. Permanece com a titularidade de seus bens e desonerado da obrigação de alimentos. Conclusão: manter duas entidades familiares concomitantes assegura privilégios ao homem. Conta com a conivência da justiça que lhe garante total irresponsabilidade.

Esta é a solução largamente chancelada pela jurisprudência.

Por isso foi enorme a repercussão da notícia do relacionamento de um homem com duas mulheres ter sido objeto de uma escritura pública. Mas há que se reconhecer como transparente e honesta a instrumentalização levada a efeito, que traz a livre manifestação de vontade de todos, quanto aos efeitos da relação mantida a três. Lealdade não lhes faltou ao formalizarem o desejo de ver partilhado, de forma igualitária, direitos e deveres mútuos, aos moldes da união estável, a evidenciar a postura ética dos firmatários. Não há como deixar de reconhecer sua validade.

Claro que justificativas não faltam a quem quer negar efeitos jurídicos ao ato notarial. A alegação é que afronta o princípio da monogamia e desrespeita o dever de fidelidade. O fato é que descabe realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade frente a formações conjugais plurais e muito menos subtrair qualquer sequela à manifestação de vontade firmada livremente pelos seus integrantes.

Eventual rejeição de ordem moral ou religiosa à dupla conjugalidade não pode gerar proveito indevido de um frente aos demais partícipes da união. Negar a existência de uma entidade familiar é simplesmente uma condenação à invisibilidade. Pelo jeito, nenhum de seus integrantes poderia receber alimentos, herdar, ter participação sobre os bens adquiridos em comum. Sequer seria possível invocar o direito societário com o reconhecimento de uma sociedade de fato, partilhando-se entre eles os bens adquiridos na sua constância.

Com esta hipocrisia não pode ser cúmplice a justiça!

 

Publicado em 30/01/2013.

 

[1] Advogada

Ex-desembargadora do TJRS