Pluriparentalidade: a realidade ética do afeto

Maria Berenice Dias[1]

 

Sumário: 1. Filiação socioafetiva – 3. Pluriparentalidade.

 

A sociedade mudou de feição, provocando eco nas estruturas de convívio. O despertar dos direitos humanos, apregoando a liberdade e a igualdade, colocou o indivíduo como sujeito de direito e a dignidade humana tornou-se o valor maior, tendo o afeto se tornado o elemento identificador dos relacionamentos familiares.

De outro lado, a evolução da engenharia genética descolou os vínculos parentais da verdade biológica. Para a concepção de um filho já não é necessário um relacionamento sexual entre duas pessoas de sexos diferentes. Levada a efeito em laboratório, multiplica-se o número de pessoas envolvidas, podendo todas elas estabelecer um vínculo de filiação com o filho assim concebido.

Com todos estes ingredientes, Novas conformações familiares adquiriram visibilidade e aceitação. As uniões tidas outrora como marginais ganharam reconhecimento social, o que levou ao esgarçamento do conceito de família.

A mudança recebeu a chancela da Justiça e acabou impondo a construção de um sistema jurídico sob a ótica da pluralidade. Aliás, é como que sempre acontece. Situações que não encontram previsão na lei batem às portas do Judiciário. O juiz, que não consegue chancelar injustiças, encontra formas de enlaçar no âmbito da tutela jurídica o que o legislador não previu. Afinal, a Justiça não pode, simplesmente, condenar à invisibilidade, negar tutela ao que foge do modelo engessado da legislação.

As mudanças foram de tal intensidade que a Constituição da República do Brasil, do ano de 1988[2] desdobrou o conceito de família e igualou os filhos. Ao dedicar à família especial proteção, a considerando a base da sociedade, abandonou a correlação entre família e casamento.  Introduzido o conceito de entidade familiar foi concedida a mesma proteção tanto à união extramatrimonial entre um homem e uma mulher, como à denominada família monoparental: um dos genitores e sua prole.

O alargamento conceitual da entidade familiar e dos vínculos de parentalidade ensejou o florescimento de toda uma nova concepção da família e da filiação, com os mais variados matizes.

Na busca de um conceito que enlaçasse este alargamento conceitual, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) identificou o afeto como o elemento constitutivo dos vínculos de conjugalidade e de parentalidade. Daí falar-se em Direito das Famílias como forma de impor um comportamento ético a todas as conformações fruto de um laço da afetividade.

 

  1. Filiação socioafetiva

Não só as relações de conjugalidade, também os vínculos de parentalidade foram alvo de profunda transformação. O afeto que se tornou o elemento identificador das entidades familiares passou a servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais.

De um lado existe a verdade biológica, comprovável por meio de exame laboratorial, que permite afirmar, com certeza quase absoluta, a existência de um liame genético entre duas pessoas. De outro lado, há uma verdade que não mais pode ser desprezada: a filiação socioafetiva, que decorre da estabilidade dos laços familiares construídos ao longo da história de cada indivíduo.

É necessário atentar que a Constituição da República garante prioridade absoluta aos direitos de crianças e adolescentes.[3] Assegura igualdade de tratamento e qualificações a todos os filhos, proibindo qualquer tratamento discriminatório.[4]

O Código Civil, editado no ano de 2002,[5] ao admitir não só o parentesco natural e civil, mas também o parentesco de outra origem, ampliou os vínculos de filiação, incorporando o conceito de socioafetividade.

Esta foi a saída encontrada pela Justiça no confronto entre a verdade biológica e a realidade afetiva.  Ao atentar ao melhor interesse da criança e do adolescente, começou a valorar a posse do estado de filho: situação de alguém que é criado como filho, mesmo sem haver vinculação genética entre eles.

A aparência faz com que todos acreditem existir situação não verdadeira, fato que não pode ser desprezado pelo direito. A tutela da aparência acaba emprestando juridicidade a manifestações exteriores de uma realidade que não existe.

 

  1. Pluriparentalidade

Diante do atual conceito de parentalidade socioafetiva, imperioso admitir a possibilidade de coexistência da filiação biológica e a construída pelo afeto.

Reconhecer que o filho tem mais de dois pais ou duas mães, lhe garante direitos com relação a todos, devendo cada um assumir os deveres decorrentes do vínculo pluriparental. Não há outro modo de contemplar a realidade da vida do que abrir caminho para a multiparentalidade: vínculos que se estabelecem com mais de duas pessoas desempenhando as funções parentais. Afinal, é impossível negar que alguém possa ter mais de dois pais, tendo todos direito de convivência, obrigação de cuidado e de pagar alimentos. De outro lado, o filho tem direitos sucessórios em relação a todos eles.

A ausência de lei admitindo a possibilidade do registro de uma pessoa em nome de mais de dois genitores não constitui um impedimento, até porque não existe proibição expressa.

O silêncio do legislador não pode ser óbice para que se assegure proteção integral a quem tem garantido constitucionalmente o direito à convivência familiar. Esta e a função do juiz, que não deve se omitir de julgar, ainda que não exista previsão legal (LINDB, art. 4º[6] e CPC, art. 140[7]).

O registro de nascimento deve identificar não só a origem biológica, mas também indicar outros os vínculos parentais. O direito ao nome trata-se de um direito de personalidade.

Foi assim que decisões Brasil afora passaram a autorizar a inserção do nome de mais de um pai ou de mais de uma mãe no registro de nascimento do filho, sem a exclusão do nome dos pais registrais.

Do mesmo modo, o padastro ou a madrasta que convive com o enteado. Reconhecida a presença de um vínculo socioafetivo entre eles, impõe-se o reconhecimento da pluriparentalidade. Ao lado do nome do pai registral é acrescentado o nome de quem também desempenha funções parentais. Trata-se de elemento essencial para a formação e desenvolvimento da sua identidade pessoal, familiar e social. A concretização desse direito – de ordem fundamental e personalíssima – somente é possível com o reconhecimento judicial da família multiparental, mediante a fiel reprodução desta realidade no registro de nascimento.

Afinal, é direito de todos – principalmente de crianças e adolescentes – ter retratado em seu assento de nascimento o espelho de sua família, quem faz parte da sua história de vida.

Outra realidade bastante frequente é quando são utilizadas as modernas técnicas de reprodução assistida, em que mais pessoas participam do processo procriativo. Nada justifica alijar qualquer delas do vínculo de filiação, quando o projeto parental envolveu todos os que embalaram o sonho de ter um filho.

Para o reconhecimento da filiação pluriparental, basta a comprovação da existência de vínculo de filiação com mais de um pai ou mais de uma mãe. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos ou apenas afetivos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los, com a consequente averbação no registro civil, para todos os fins jurídicos, familiares e sucessórios. A multiparentalidade, inclusive, deve ser decretada de ofício pelo juiz, sem transbordar os limites da demanda.

A exclusão de direitos é resultado da perversa tentativa, de não ver o que foge do modelo do que não é espelho. Esta falta de visão só vem em prejuízo de quem tem o direito de ser reconhecido como filho daquele  que exerce as funções parentais.

E com esta visão cega a Justiça não pode conviver.

[1] Advogada especializada e Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões.

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família

Coordenado dos Núcleos dos Países de Língua Portuguesa do IBDFAM.

www.berenicedias.com.br

 

[2] CR, art. 226: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

  • 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
  • 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
  • 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
  • 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

 

[3] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[4] CF, art. 227, § 6º: Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

[5] CC, art. 1.593: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.

[6] LINDB, art. 4º: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

[7] CPC, art. 140: O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

 

 

 

Data do Artigo: 11/04/2024