Os muitos “nãos” a um “sim”!

Maria Berenice Dias[1]

O casamento parece ter um efeito mágico.

Não só chancela a prática da sexualidade. Até a impõe. Isso porque a ausência de sexo autoriza a anulação casamento. Decisões neste sentido não faltam. Até parece que o casamento se “consuma” na noite de núpcias, velha crença que ainda subsiste. Depois da solenidade do matrimônio todas as portas se abrem. Os pais até cedem o quarto de casal aos filhos, abençoando o que antes era feito às escondidas.

Depois do “sim” tudo acontece!

Os noivos viram marido e mulher. Adquirem o estado civil de casados. A depender do regime de bens, surge a comunicabilidade do que for adquirido por qualquer deles. E para alienar um bem imóvel é necessária a vênia conjugal. Se um for estrangeiro o outro tem o direito de obter visto de permanência e até a cidadania brasileira. De posse da certidão de casamento, a mulher pode registrar os filhos no nome do marido, sem que alguém questione se o casal está vivendo junto. Qualquer um pode inscrever o seu cônjuge como dependente em tudo, plano de saúde, órgão previdenciário e até no clube social.  Ainda que um venha a morrer no dia seguinte ao casamento, o sobrevivente é seu herdeiro necessário, tem assegurado direito real de habitação e o exercício da inventariança.

Tudo acontece de modo instantâneo.

Na união estável já não é bem assim. Mesmo tendo sido chancelada pela Constituição Federal como entidade familiar digna da especial proteção do Estado, as relações extramatrimoniais sempre foram consideradas como um casamento de segunda categoria. Aliás, durante 70 anos, com o nome de concubinato, eram reconhecidas como meras sociedades de fato. Por isso permaneceram fora do âmbito do direito das famílias e do direito sucessório. Apesar da mudança, insiste a lei em negar aos companheiros os mesmos direitos dos cônjuges. Esqueceu-se de reconhecer que também ocorre a mudança do estado civil, pois as consequências patrimoniais são idênticas. A comunicabilidade dos aquestos. Esta omissão tende a gerar prejuízos enormes. A desnecessidade de declinar a condição familiar leva os conviventes a se qualificarem como solteiros. Apresentando-se como dono exclusivo do patrimônio imobiliário que está no seu nome, pode aliená-lo sem a participação do outro. Para evitar prejuízo ao terceiro, que foi induzido em erro, por desconhecer que o vendedor não era titular exclusivo do bem adquirido, o prejuízo é do par. Perdeu a metade do bem que também era seu e resta com simples direito indenizatório perante o – agora – ex-companheiro.

Apesar de admitido que os parceiros firmem contrato de convivência, este não tem os mesmos efeitos da certidão de casamento. Ainda que exista o pacto, tal não serve para a mãe registrar o filho em nome do pai. É necessário ingressar com ação investigatória de paternidade. Talvez porque na união estável não existe o dever de fidelidade. De outro lado, o contrato de união muitas vezes não basta para provar a existência do vínculo familiar, sendo exigidas provas outras para que um seja admitido como dependente do outro.

Mas é no âmbito sucessório que as diferenças se acentuam. O companheiro sobrevivente não é herdeiro necessário e está em último lugar na cadeia hereditária. Herda depois dos parentes colaterais de quarto grau, quais sejam: sobrinhos-netos, tios-avós e todos os primos. Para remediar um pouco esta desastrosa regra, existe a chamada concorrência sucessória, mas os parentes colaterais recebem o dobro do companheiro. E ninguém sabe se este quinhão é calculado sobre a metade dos aquestos ou sobre a totalidade da herança. A doutrina não se entende e a jurisprudência hesita.  Ainda bem que alguns tribunais vêm reconhecendo a inconstitucionalidade destas diferenciações.

De qualquer modo, se o casal não quiser sujeitar-se a este tratamento discriminatório pode casar. Ainda mais agora, que a dissolução do casamento pode ser instantânea, já que acabou o instituto da separação e não mais se exigem prazos para a concessão do divórcio. Assim, voltou a ser atrativo o casamento.

Mas, e as uniões homoafetivas, que em nada se diferenciam das uniões heterossexuais, em termos de comprometimento mútuo, cumplicidade e afeto? Porque os homossexuais não podem casar? A lei não veda, pois não está prevista a identidade de sexo como impedimento matrimonial. Ainda assim os escassos pedidos de habilitação que chegaram à justiça foram rejeitados, sob o argumento – para lá de insustentável – que o casamento seria inexistente. Mas não há como dizer que não existe uma relação que em nada se diferencia das demais entidades familiares. Aliás, a Lei Maria da Penha define família como uma relação íntima de afeto independente da orientação sexual. Este conceito serve a todo o sistema jurídico, não mais sendo possível dizer que as uniões de pessoas do mesmo sexo não podem ser reconhecidas por ausência de previsão legal.

De qualquer modo, a falta de lei não pode servir de justificativa para negar direitos. Sabendo o legislador da impossibilidade de prever todas as situações dignas de tutela determina ao juiz que julgue. Inclusive aponta os recursos que deve fazer uso: analogia, princípios gerais do direito e costumes. Ora, não dá deixar de reconhecer que as uniões homoafetivas em nada se diferenciam das uniões estáveis, o que impõe invocar analogicamente as regras que as regem. Ao depois, os princípios constitucionais asseguram a igualdade e impõem o respeito à dignidade, além de proibir preconceitos de qualquer ordem. Além disso, cada vez mais a homoafetividade vem inserindo-se no âmbito social. As paradas LGBT bem provam que está havendo significativa mudança dos usos e costumes.

Diante deste panorama nada, absolutamente nada, justifica negar reconhecimento aos pares homossexuais, que não podem ter seus direitos de cidadania negados pelo só fato de o legislador ter medo de aprovar leis que tutelem parcela significativa de cidadãos. Ainda bem que a justiça vem colmatando a omissão legal e, reconhecendo as uniões como estáveis, tem assegurado todos os direitos, inclusive o de os parceiros constituírem famílias com filhos.

Mas negar direitos os homossexuais gera benefícios. E talvez por isso – mais do que por puro preconceito – interessa. Basta atentar que o pagamento de prêmios, cotas sociais, planos de saúde etc. asseguram direitos ao titular e também aos seus dependentes: cônjuges e filhos. É bem fácil figurar a hipótese. Quando alguém se tornar sócio de um clube pode frequentá-lo com sua família. Se ele é casado, basta apresentar a certidão de casamento para que a mulher passe a ter acesso às dependências sociais. O mesmo acontece com os filhos. Na medida em que vão nascendo passam à condição de dependentes do titular. Negar tal possibilidade a um sócio, pelo fato de o seu par ser do mesmo sexo, além de flagrar inconstitucional preconceito, traz benefícios de ordem financeira à entidade. Isso porque não existem valores diferenciados de mensalidade em face da orientação sexual do sócio. Escancarado o enriquecimento sem causa de quem cobra igual e concede direitos a menos.

E, se um par tem todos os direitos garantidos por dizer “sim” perante um juiz de paz, não há como dizer muitos “nãos” a quem sequer tem a chance de dizer sim ao direito de ser feliz!

 

Publicado em 23/09/2010.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

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